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Em musical, Zahy Tentehar recupera as memórias de sua mãe

Na peça Azira’I, em cartaz dia 18 e 19/11, no Teatro Apolo de Recife, a atriz indígena narra as lembranças da primeira mulher pajé da reserva de Cana Brava

Por Humberto Maruchel
15 nov 2023, 13h59
Zahy-Tentehar-Azira'I
 (Daniel Barboza/divulgação)
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Zahy Tentehar está prestes a desembarcar no Recife para compartilhar uma história que fez sucessos nos palcos do Rio de Janeiro; trata-se de suas memórias de infância e as imagens que restaram de sua mãe, Azira’I. O espetáculo de mesmo nome é uma homenagem à matriarca. Poderia ser apenas mais uma peça sobre relação familiar, mas a crônica de sua mãe traz aspectos que a distinguem da maioria dos brasileiros. Azira’I foi a primeira mulher pajé da reserva indígena de Cana Brava, no Maranhão. Ela possuía muitos dons, sendo a cura o maior deles. Essa vocação foi descoberta ainda na sua infância com alguns testes até confirmar ser ela a próxima da linhagem. A cura se dava através da sabedoria das plantas, do uso das mãos e pelo canto.

Zahy-Tentehar
(Leo Aversa/divulgação)

Para a peça, Zahy quase não utiliza recursos cenográficos. Ela parte do minimalismo, das iluminação e do corpo da atriz para recompor as imagens da infância, os trejeitos da mãe e o sentimento da atriz-personagem que lida com o luto.  

Zahy-Tentehar-Azira'I
(Daniel Barboza/divulgação)

“Tem uma característica muito curiosa da minha mãe com a qual eu me identifico. Ela tinha muitas habilidades e cativava sem a necessidade de querer cativar, tinha uma espontaneidade e humor muito genuínos. Tem sido muito prazeroso poder materializar a minha mãe [através da peça], porque é uma maneira de continuar sentindo ela. Ela existe em mim, não só como referência e admiração pela mulher que ela foi, mas pela mulher que ela continua representando para mim. Ela era muito humana”, conta Zahy em entrevista à Bravo!.

Azira’I faleceu em 2021. No entanto, naquele momento, a atriz já havia se reunido com o diretor Duda Rios, da companhia Barca dos Corações Partidos, quem conheceu durante a montagem de Macunaíma, em 2019, para fazer de sua biografia uma peça teatral. Um dia, logo após o ensaio de Macunaíma, decidiram assistir a uma peça juntos. Em seguida, estenderam a noite num bar. Entre conversas e cervejas, Zahy recuperou algumas de suas lembranças com Duda, que ficou muito comovido com o que escutou. Decidiram, ali, construir uma dramaturgia a partir delas.

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Zahy-Tentehar
(Leo Aversa/divulgação)

“Desde sempre, tínhamos a noção de que não gostaríamos de criar um discurso panfletário sobre a causa indígena. Queríamos abordar esse espetáculo pela dinâmica do sensível, a partir da relação de mãe e filha, a partir de uma autobiografia, mas que tem um contexto muito específico e ele faz parte de uma causa e de uma luta”, revela o diretor. “Queríamos falar, especificamente, da cultura da Zahy e do povo Tehehar, que é o povo dela.”

Zahy-Tentehar-Azira'I
(Daniel Barboza/divulgação)

Foram quatro anos alimentando o sonho de fazer a peça. Nos últimos deles, no entanto, a agenda de Zahy foi ficando cada vez mais disputada. A atriz participou das séries Cidade Invisível (da Netflix) e IndependênciaS (da Cultura). Duda já estava muito envolvido com as histórias de Zahy e percebeu que precisavam de mais uma pessoa para compor a equipe criativa, que pudesse ajudar a encontrar a essência da peça e dar um recorte àquelas coleções de textos, então convidaram Denise Stutz, que codirige o espetáculo.

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O que torna a trajetória de Azira’I ainda mais especial é o fato de ela ter rompido uma linhagem que, até aquele momento, só havia contemplado os homens da aldeia. Antes dela, em sua família, seu avô também havia sido líder espiritual daquela comunidade. “No meu povo não se escolhe o pajé. É um dom que nasce com a pessoa. Falamos que os maíras que decidem, então a pessoa já nasce com aquele dom e no decorrer da sua vida ela vai desenvolvendo. Se esse for o seu desejo”, diz Zahy. “Ela quebrou uma história ali porque, normalmente, o pajé é um homem. Então se um pajé tem três filhos, ele vai observar se o primeiro ou o último deles têm os dons. Nunca é o filho que está no meio. E se nenhum deles possui essa vocação, então esperam um neto.”

Zahy-Tentehar-Azira'I
(Daniel Barboza/divulgação)

Zahy é a caçula dos 33 irmãos (a maioria por parte de pai). Caso decidisse ter ficado na aldeia, poderia ter seguido os passos da mãe. Zahy revela no espetáculo que, mesmo que tenha herdado o dom do canto, Azira’I nunca teve a oportunidade de ouvir a filha cantar. As duas, entretanto, compartilhavam muitas outras qualidades. “Ela tinha a voz muito doce, mas também era muito forte. Quando ela ia curar alguém, ela se transformava. Ela não chamava as entidades, ela se transformava na própria entidade. Era toda pequenininha e frágil, ao mesmo tempo que parecia Imbatível.”

Não fazia parte de seus projetos se tornar atriz quando ela se mudou do Maranhão para o Rio de Janeiro. Foi um imprevisto no caminho que acabou dando certo, muito certo. A jovem foi descoberta a partir de um vídeo em que ela discursava em sua língua originária. E, então, foi convidada por Luiz Fernando Carvalho para o teste de uma série que estrearia na TV Globo, “Dois irmãos”, adaptação do romance de Milton Hatoum. “Ele (Luiz) tem essa característica de apresentar atores com ou sem experiência. Eles precisavam de uma atriz indígena que pudesse falar a língua nativa e não precisava necessariamente ter uma experiência como atriz profissional. Apesar de não ter essa pretensão inicial, entendi que sempre fui atriz. Os contadores de histórias são atores natos.”

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Zahy-Tentehar
(Leo Aversa/divulgação)

Dos três dons que a mãe tinha, a filha herdou o da música. Na peça que celebra Azira’I, ela traz algumas das melodias típicas de sua cultura, como os lamentos em homenagem aos mortos, em seu idioma nativo, ze’egete. “Não recebi um título de pajé porque eu não permaneci dentro da minha aldeia e também porque eu me desenvolvi num outro lugar, dentro da arte.  Acredito que a partir dela eu consigo acessar outras pessoas.”

A peça Azira’I, muito além de uma declaração do amor de uma filha por sua mãe, pode ser também vista como um rito espiritual, que faz uma mulher se manter viva a partir do canto e das palavras. 

Zahy-Tentehar-Azira'I
(Daniel Barboza/divulgação)
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Peça Azira'I

Dias 18 e 19 de novembro, às 18h
Teatro Apolo: Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife
80 minutos | 12 anos | Musical

Entrada gratuita. Os ingressos devem ser retirados na bilheteria do teatro uma hora antes de cada sessão

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