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Camila Morgado encara Nelson Rodrigues

Em "A Falecida", a atriz interpreta Zulmira, uma mulher frustrada que começa a fantasiar a morte como uma maneira de alcançar a ascensão social

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 13 set 2023, 11h23 - Publicado em 13 set 2023, 10h26
A Falecida
 (Hugo Cecatto/divulgação)
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Quando a peça “A Falecida”, de Nelson Rodrigues (1912-1980), foi encenada pela primeira vez em 1953, os críticos da imprensa saíram escandalizados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Definiram a montagem, que contava com os atores Sérgio Cardoso e Sônia Oiticica, como “a busca mórbida pelo mórbido” e “uma procura vazia pelo escabroso”. De fato, o autor tinha um gosto peculiar em provocar o público com suas tragédias, abordando temas como morte, fanatismo religioso, incesto e traição.

O texto apresenta o drama de Zulmira, uma mulher frustrada no subúrbio carioca, casada com Tuninho, um apostador desempregado e fanático pelo Vasco. Zulmira não tem mais nenhuma perspectiva. Sua vida é medíocre, repleta de tédio e sem nenhum sinal de prosperidade. É então que ela descobre que está com tuberculose e, possivelmente, com os dias contados. Em vez de lamentar, ela torna a morte seu maior desejo, começando a fantasiar um funeral caro e cheio de pompa, digno de invejar sua prima, Glorinha, que passa a representar todo o ódio da personagem central. Nesse contexto, nenhum personagem está livre de suas imperfeições.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)

Setenta anos depois de sua estreia, o diretor Sergio Módena, seguro da atemporalidade da dramaturgia de Nelson Rodrigues, decidiu dar uma nova encenação para o texto, enfatizando especialmente a dupla moral do conservadorismo cristão. “É uma radiografia da miséria humana, de suas paixões e desejos mais profundos. Além disso, o texto denuncia a falsa moral e o fanatismo religioso. Nos últimos anos, todos nós testemunhamos que essas questões estão cada vez mais enraizadas em nossa população”, declara o diretor em entrevista à revista Bravo!

Ele convidou Thelmo Fernandes para viver Tuninho e a atriz Camila Morgado para interpretar Zulmira, a protagonista, ou melhor, a própria “falecida”. Para o diretor, a intérprete encarna uma qualidade essencial dos personagens de Nelson. “Camila tem a força e a inquietude das grandes atrizes, é trágica e cômica. Nelson dizia que seus diálogos em ‘A Falecida’ eram ‘dupla face’, ou seja, faziam rir e tensionavam o espectador ao mesmo tempo. Intérpretes como Camila fazem isso de forma brilhante”, explica.

No início da adaptação, vemos Zulmira em êxtase apoiada no sepulcro, como alguém que acaba de acordar para a morte. Em seguida, o enredo revisita seus últimos momentos em vida. Desesperada, ela se encontra com uma cartomante, em busca de redenção de uma existência miserável. É ali que ouve as palavras que irão assombrar e definir todo o seu destino: “Cuidado com a mulher loira”. Zulmira pensa que essa mulher é sua prima e vizinha, Glorinha, transformando-a em sua maior rival, no símbolo de tudo aquilo que a oprime: a pobreza, o pudor, o machismo.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)
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Conversamos com Camila Morgado sobre a contemporaneidade da trama que marca um ponto de virada na obra de Nelson Rodrigues, as adversidades da protagonista e o seu retorno aos palcos, após um hiato de 11 anos.

Qual foi a sua impressão ao ler o texto pela primeira vez? O que você imaginou que deveria trazer para essa personagem?
Quando terminei de ler, percebi que havia passado um tempo imersa nesse universo de Nelson, um universo com uma densidade psicológica muito ampla, onde o mundo interno dos personagens é fascinante, contemplando seus medos, frustrações e desejos.

Senti muita compaixão por Zulmira, essa mulher que anseia pela morte com tamanha intensidade. O diretor da peça, Sérgio, e eu sempre imaginamos representá-la com credibilidade, dando sentido a essa mulher que elabora seu próprio destino e carrega consigo o peso trágico. Alguém que percorre todas as etapas de sua própria destruição.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)

No início, a peça dá margem para várias interpretações e até nos confunde em relação aos verdadeiros motivos da Zulmira. Na sua opinião, o que justifica as atitudes dela?
Acredito que essas são as consequências de uma mulher que foi reprimida, que não teve voz, que tentou trazer alguma cor para sua realidade, que é tão insatisfatória, opressora e sem oportunidades.

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Zulmira é uma mulher atormentada pela culpa, e é por isso que ela decide buscar na morte uma solução. Também considero importante ressaltar que sua busca religiosa fanática representa a necessidade de conformidade com as normas, bem como simboliza a sexualidade reprimida que se torna o núcleo central da culpa que vemos a personagem enfrentar.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)

Zulmira está longe de ser uma heroína, mas ainda assim, é uma mulher que vive uma vida solitária em um ambiente cercado por homens. Como a discussão de gênero é abordada na peça?
Essa é uma questão que permeia todo o texto de Nelson o tempo todo. Cheguei a ver alguns comentários da plateia, como: “Essa peça é machista ou é uma crítica ao machismo?”. Achei isso maravilhoso. Zulmira leva uma vida medíocre, está inserida em um ambiente opressor onde seu marido mal a percebe, a não ser quando precisa de algo, como espremer um cravo em suas costas. Além disso, os homens na peça a veem como um objeto de sedução.

Acredito que a peça aborda temas muito relevantes, e o mais interessante é que foi escrita em 1953. Setenta anos depois, esses temas ainda fazem parte do nosso cotidiano.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)
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O que a peça revela sobre aquele momento histórico?
Eu acredito que naquela época, Nelson já apontava a hipocrisia presente em nossa sociedade, assim como uma estrutura familiar hipócrita. Além disso, ele também abordava o conservadorismo, algo que não mudou completamente. Basta olharmos para o que vivemos há quatro anos para perceber isso.

Também vejo que questões como o machismo e a desigualdade social estão muito presentes na peça. Testemunhamos um casal que não consegue escapar de sua realidade medíocre e opressora, e parece nunca poder ascender socialmente.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)

No espetáculo, a personagem Glorinha ocupa uma posição de oposição à Zulmira. No entanto, ela nunca aparece. Quais contrastes ela estabelece nessa dinâmica?
Glorinha só aparece nos diálogos e citações. A partir do momento em que a cartomante diz a Zulmira para tomar cuidado com uma mulher loira, o gatilho é acionado, e Glorinha começa a ecoar na mente de Zulmira. Ela representa todo o tormento da protagonista, simbolizando as normas, a culpa, a vingança e todos os motivos que contribuem para a inquietação de Zulmira. Ela se torna quase como uma voz interna delirante para Zulmira.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)
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Até hoje, Fernanda Montenegro é lembrada pelo filme “A Falecida”, de 1965. De alguma forma, a atuação de Fernanda contribuiu para a construção da personagem? Você teve oportunidade de falar com Fernanda Montenegro sobre a peça? Se sim, ela te deu algum conselho para o papel?
Assisti ao filme e gosto muito dele. Não tive a oportunidade de conversar com a Fernanda Montenegro. Uma coisa que acho muito significativa é a questão social em que os personagens vivem, que é retratada de forma brutal. Fica claro que esses personagens estão condenados a uma vida sem nenhuma possibilidade de melhoria social.

Na peça, a morte ocupa um lugar central e permeia toda a trama. Qual é o significado que ela tem na história desses personagens?
Para ela, a morte é a salvação, a poesia, a beleza, tudo o que ela não pôde encontrar em sua vida. É também algo sagrado, pois Zulmira acredita ingenuamente que ao morrer, estará salva.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)

As peças de Nelson Rodrigues frequentemente recebem novas montagens, demonstrando a contemporaneidade de sua dramaturgia. Em “A Falecida”, especificamente, qual é o diálogo possível com o Brasil de 2023?
Acredito que abordamos pontos muito pertinentes com “A Falecida”, tratando das questões das mulheres e também daquelas pessoas excluídas que não têm voz. Além disso, tocamos na questão religiosa, no conservadorismo e no fanatismo religioso, onde se acredita que a redenção virá através deles. Todos esses temas são extremamente relevantes em nosso Brasil de 2023.

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)
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Quando foi anunciada a estreia deste espetáculo, muito se falou sobre o seu retorno aos palcos após 11 anos de hiato. No entanto, ao vê-la em cena, fica a impressão de muita segurança e familiaridade com esse território. Há algum motivo especial para esse afastamento? Qual é a sensação de retornar ao palco depois de mais de uma década?
Eu estava trabalhando em outros projetos, e então levei um susto quando percebi quanto tempo havia se passado desde a última peça. Minha sensação ao retornar ao teatro é de imensa alegria. Acredito que essa questão da presença física no teatro, tanto do ator quanto do público, é um encontro muito poderoso que me preenche completamente.

Sinto como se estivesse voltando a um lugar que já conheço, só que agora, 11 anos depois. Me sinto mais madura como atriz e como mulher também.

A falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)

Por que o público precisa ir ao teatro assistir “A Falecida”? O que essa peça tem de mais especial?
Primeiramente, temos Nelson, um dos nossos maiores autores. Acredito que ele era extremamente erudito e popular ao mesmo tempo. Considero o texto dele impecável; suas histórias refletem muito de nossa cultura e sociedade. Além disso, acho que a peça está maravilhosa e sinto muito orgulho de fazer parte deste projeto.

Pretende voltar aos palcos mais vezes nos próximos anos? Existe alguma outra peça que gostaria muito de estrear?
Vou responder de uma forma bem sucinta: por enquanto, estou toda Zulmira [risos].

“A Falecida”
Teatro Sesc Santo Amaro
Rua Amador Bueno, 505, Santo Amaro, São Paulo (SP)
De 18/08 a 01/10. Sextas, 21h. Sábados, 20h. Domingos, 18h.
Ingressos: $40 (inteira), R$20 (meia entrada) e R$12 (credencial plena)
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 90 minutos

A Falecida
(Hugo Cecatto/divulgação)
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