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“Você não vê Caetano tocando na FM O Dia”

Beth Carvalho e Xande de Pilares atravessaram o Túnel Rebouças em sentidos opostos mas com a mesma intenção: fazer-nos lembrar que brasilidade é negritude

Por Gabriel Dias
Atualizado em 18 ago 2023, 16h01 - Publicado em 18 ago 2023, 00h54
Xande PIlares e Caetano Veloso.
 (Marcos Roger/arquivo)
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Xande nunca tinha visto uma cantoria em um apartamento. Já tinha ouvido falar, talvez da época da bossa nova, que esses encontros existiram. Mas, no bairro de Pilares, ele estava acostumado a soltar a voz em bar, em quadra de escola de samba, em rua. Aquela reunião de artistas de diferentes estilos com violões acústicos e cantando baixo era algo inédito. Para Xande de Pilares, ele sequer era artista. Sempre negou esse status, dizendo que sambista não tem isso. Demorou um tempo para se enxergar ao lado de medalhões da música brasileira. E ainda não caiu a ficha de que seu álbum Xande Canta Caetano, que nasceu dos encontros na casa de Caetano Veloso e Paula Lavigne, figurou entre os 10 álbuns estreantes mais escutados no mundo em plataformas online na última semana: “Eu nem sabia que existia essa lista”, ele diz.

Xande PIlares e Caetano Veloso.
(Marcos Roger/arquivo)

Xande Canta Caetano foi gravado em 2021 para ser lançado em 2022, mas estreou mesmo nas plataformas digitais em 2023. Portanto, a homenagem ao tropicalista passou por diversos significados – como não chorar ouvindo o verso “gente quer respirar ar pelo nariz” no auge da pandemia de Covid-19? Talvez, se tivesse sido liberado em agosto do ano passado, às vésperas das propagandas eleitorais, não ganharia tanto peso. Xande não sabe, só tem certeza que o tempo, quem comanda, “é o cara lá de cima” e que está muito realizado com a repercussão do trabalho.

Entre as análises de jornais e opiniões em sites de imprensa, a que mais se destacou nas redes foi a de Luana Carvalho, filha de Beth Carvalho, que está escrevendo a biografia de Xande. Ela publicou em seu Instagram: “[…] foi mais uma confirmação de que um preto da periferia pode cantar versos aliterados, ‘sofisticados’, significantes, significados. E acho q não à toa Caetano caiu num pranto. Porque ele sabe. Ele sabe o poder do samba. Ele sabe da honra de ter essa galera cantando ele. A consciência de classe q há nisso tudo”.

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Luana demorou para ouvir o álbum completo porque chora a cada música. Além de ser um trabalho feito por pessoas muito próximas a ela, este projeto resgata um ideal parecido ao de sua mãe: “a arte de Caetano olha o tempo todo para o que está acontecendo no Brasil, sem medo de se reinventar, de experimentar novos músicos. E isso foi o que minha mãe também fez, por mais tradicionalista que tenha sido dentro do samba. Minha mãe era um pouco mais purista, mais radical, mas foi menos radical do que parece. Porque quando ela insiste no samba, ela sabe que não existe nada mais importante até hoje no Brasil do que o movimento antirracista”.

Xande PIlares.
(Fernando Young/arquivo)

Para Luana, não à toa está havendo uma febre de rodas de samba no Rio de Janeiro – o samba é a manifestação mais democrática do Brasil porque é preta. “Pode até ser folclorista, mas tem uma compreensão chegando através dessas revoluções que estamos tentando fazer, de pensar o que é o Brasil, de pensar o que é o pensamento de esquerda, de pensar o que é popular, de pensar o que é a construção de uma nação que não tem identidade ainda. Ficamos rodando atrás do próprio rabo sem saber para onde ir e acabamos indo atrás do rabo de outras nações. A gente não é os Estados Unidos, a gente não é a Europa e a gente não é a África”.

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Apesar da capa estampar o rosto de Xande sugerindo a apresentação do sambista ao público do Caetano – como conta Fernando Young, diretor criativo dos clipes e da fotografia do álbum, que são obras à parte deste projeto – essa relação é uma via de mão dupla. Assim como Beth Carvalho, Caetano não está só cedendo o seu lugar para um artista negro. Mas também está tendo a honra de Xande emprestar sua voz para a arte dita ‘sofisticada’ chegar ao povo. “Quando eu digo que Caetano agora pode sentar na mesa do povo não é porque ele agora está sendo liberado. Mas ele pode porque ele tem esse poder, porque ele conversa com o povo e o povo entende. O problema é que a indústria fonográfica fez parecer uma música de gente branca. Eu via Caetano tocando na MTV. Você não vê o Caetano tocando na FM O Dia”, reflete Luana.

Xande PIlares.
(Fernando Young/arquivo)

E, de fato, Xande revela que tem muitos fãs seus que estão ouvindo Caetano pela primeira vez com esse disco. “Escutei ontem uma menina falando que só conhecia ‘Sozinho’ do Caetano. Aí eu disse que essa música era do Peninha e que o Caetano regravou. Tem gente dizendo ‘caramba, Xande, você abriu a minha mente. Tô ouvindo Caetano pra caramba agora’. Esse álbum acaba se tornando uma referência, assim como eu passei a escutar muitos artistas por causa da regravação de outras pessoas”.

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“Estou me sentindo mais artista”

No making of do álbum, que foi disponibilizado no canal oficial de Xande no YouTube na semana passada, aparece o sambista sendo maquiado antes das filmagens dos clipes. Ele brinca: “o samba é tão marginalizado que quando a gente se depara com esse tipo de tratamento, a gente fica meio assim”. Com esse trabalho, ele diz que está se sentindo mais reconhecido e que sua carreira chegou em outro patamar. Anda pensando muito mais no seu papel enquanto artista na sociedade: “as reuniões na casa do Caetano abriram muito a minha cabeça. Até para compor”.

E o reconhecimento faz lembrá-lo de Beth Carvalho, quem lhe dava esporros para fazê-lo cantar: “eu não queria ser cantor. Meu negócio era tocar meu cavaquinho”. Quando era criança, Xande gostava de Roberto Carlos, Nat King Cole e Elvis Presley, até ganhar de sua mãe dois discos de samba – Pandeiro e Viola, de Beth, e Tendinha, de Martinho da Vila. Foi com eles que Xande conheceu o gênero e se reconheceu no que ouvia. Portanto, desde cedo, a madrinha lhe deu confiança para se ver como artista e ocupar esses lugares, como ele diz, sentido à Zona Sul. “Fiz esse movimento assim como fez Pretinho da Serrinha e assim como fez Zé Kéti. Foi a mesma coisa. Zé Kéti negociava: ‘eu te levo aqui e você me leva ali’. E assim a nossa música vai caminhando, como Caetano cantando com Dona Ivone Lara, Zezé Motta com Maria Bethânia, da Alcione com Clara Nunes”.

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Essas negociações que embaralham as barreiras da ‘alta cultura’ e da ‘cultura popular’ fazem parte de toda a história do samba e são a esperança presente na música popular brasileira. Esse sentimento de que o país vai dar certo sempre que ouvimos uma canção do Pixinguinha ou do Chico Buarque, por exemplo, é o que norteia o sentido da MPB – tal qual uma revolução russa do clipe de “O Amor”. Como pensa Luana, “se o Brasil fosse mais esse disco, a gente estaria muito mais perto do que a gente realmente é”.

Xande PIlares.
(Fernando Young/arquivo)

E para além do que esse álbum já representa na história da nossa música, Xande encara esse projeto como um recado para os sambistas da nova geração. “Esse disco é um se liga. Vejo muitos cantores querendo um ser melhor que o outro. Mas rapazeada, aqui também é legal de se explorar. Estamos vivendo uma época que todo mundo só tá fazendo música para quem tá na rua, na balada. Só que tem gente que quer ouvir música em casa”. Entre regravações de pagode 1990, sambas com coreografias para o TikTok e disputas por streams, Xande Canta Caetano vai na contramão da lógica comercial e repensa o consumo do gênero no Brasil.

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