Cancioninski: o lado musical do poeta e escritor Paulo Leminski (1944-1989)
Conheça o lado compositor de Paulo Leminski, que virou best-seller após o lançamento de sua poesia completa.
Quem, desprovido de qualquer talento musical ou de uma voz afinada, não se lamentou algum dia pela falta dessas qualidades? E, como consequência de tais limitações, não se viu obrigado a abandonar pretensões de se tornar um astro pop? Muitos dentre nós, certamente, mas não Paulo Leminski (1944-1989). O poeta curitibano, neto de poloneses que migraram para o Brasil no fim do século 19, saía da adolescência nos anos 1960, quando o sonho da maioria dos jovens ligados em música, aqueles que deixavam o cabelo crescer e mascavam chicletes, era estar no programa Jovem Guarda, da TV Record, ou no palco de Woodstock, embalando garotas com mensagens de paz e amor.
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Com Leminski não seria diferente. Este biógrafo estava próximo da cena curitibana na época e, como tal, sugere a hipótese nada absurda de que, cansado de ser plateia, ele deu asas à sua imensa vaidade e resolveu ser músico. Ainda que fosse desafinado e não tocasse com propriedade o violão, único instrumento em que se arriscou, o poeta é autor de cerca de 80 canções, muitas criadas em parceria e algumas escritas para estrelas da música brasileira – como Sempre Ângela, com Moraes Moreira e Fred Góes, para Ângela Maria.
Em 2013, Leminski tem alcançado o reconhecimento de que não desfrutou enquanto vivia. Toda Poesia, lançado em 2013, atingiu a tiragem de 80 mil exemplares logo na primeira edição, e, espanto insistentemente registrado pela imprensa e nas redes sociais, figurou nas listas de best-sellers. Em agosto do mesmo ano, cerca de 10 mil documentos do poeta – entre reportagens, cartas, vídeos e fotografias – foram disponibilizados para escolas e bibliotecas do país todo, resultado de um trabalho de digitalização de seu acervo que tem à frente uma de suas filhas, Áurea. Ao mesmo tempo, Estrela, a caçula, preparou um álbum duplo com canções do pai, que foi lançado no começo de 2014, e um songbook, que antecipou o boom da febre dos audiobooks e podcasts em 2024.
Proteja, amor
até o último susPiro [pausa rápida para respirar] este fôlego
naufragado em tantos beijos e Proteja sobretudo
o aqualung que eu te dei ele é nossa garantia
de oxigênio até o fim…
um escafandro dá Pra dois
e se tua mãe quiser morar, eu deixo faço a minha exigência:
vá dormir quando eu te beijo… Proteja, amor…
Duas PaulaDas e uma PeDraDa
A música sempre teve, no contexto da obra de Leminski, um papel secundário, mas nem por isso irrelevante. Apesar das variantes no currículo, que registrava atividades como professor, publicitário, tradutor, faixa-preta de judô, ensaísta e biógrafo, o curitibano se definia como um poeta, e essa era a sua bandeira. Fazer-se músico, de violão em punho, sempre foi um desafio, encarado, segundo suas próprias palavras, dentro do quadrante existencial da máxima “distraídos venceremos” – título de seu livro de poemas de 1987.
Apesar de vaidoso, Leminski não era desmedidamente pretensioso: até o final, sempre foi um aluno, jamais um professor de violão. Ficava difícil definir quando aquelas reuniões com os amigos, para troca de ideias e cantorias (ele sempre colaborando com as letras), eram apenas cervejadas ou ensaio musical.
O instrumento chegou pelo irmão mais novo, Pedro, quando o poeta, então com 20 anos, já tinha definido seu caminho pelas letras. Com ele e um amigo, Paulo Bahr, Leminski criou o trio Duas Pauladas e Uma Pedrada. A primeira canção, em parceria com o irmão, foi a balada Oração de um Suicida, gravada em 1981. Pedro escreveu a primeira parte e Leminski, a segunda. Saíram da pena do caçula os versos derrotistas “Perdi-me na vida / Achei-me nos sonhos / A vida que levo / Não é a que quero / Não quero mais nada”. Leminski completou, inventando um suicídio do planeta: “Quando a Terra se acabar / Você vai chorar / Não adianta mais / Vendo esta Terra não compensa / Rezando na presença / De um gigante cogumelo”. Os versos de Pedro revelaram-se um trágico presságio: em dezembro de 1986, aos 38 anos, ele se enforcou no quarto de pensão onde morava.
Estrela Ruiz Leminski, filha caçula do poeta, prepara songbook e CD com músicas do pai, que canta e toca em uma das faixas
por Karen Monteiro
“Ele às vezes brincava de compor comigo: colocava o violão deitado no meu colo e a gente ficava inventando músicas malucas”, lembra Estrela Ruiz Leminski, escritora e compositora, filha mais nova de Paulo Leminski com Alice Ruiz. Em 2008, ela se incumbiu de redescobrir reminiscências musicais do pai. Aos 32 anos, preparou m CD duplo com canções dele. Fez igualmente um songbook, reunindo cerca de 80 composições, além de relatos de parceiros. Acompanhada de sua banda, Música de Ruiz, ela se apresenta em shows embalados pelo repertório do poeta.
As criações, em fitas cassete, vêm sendo transcritas aos poucos, quando Estrela encontra brechas antes de preparar o almoço, depois de levar o filho na escola ou entre um ensaio e outro. O bolor, as sobreposições de áudio e os chiados dificultam o trabalho.
O processo de escolha das canções para o álbum não seguiu uma linha previamente definida: “Elas estão no repertório porque têm de estar. As opções são uma tentativa de equilíbrio entre as músicas mais significativas e as que formam um conjunto bacana para colocar no mesmo CD”.
Segundo Estrela, as composições já estão prontas nas fitas – algumas têm até sugestões de arranjo, que ela está modernizando. Para as regravações, não será preciso criar nada. “Há inéditas, de que me lembro porque meu pai as tocava muito em casa. É o caso de Guria, Homem do Sul e Não me Chame de Senhor.” Outras, Estrela tenta resgatar da memória da mãe e de alguns amigos.
‘Valeu’ traz o próprio Leminski, em voz e violão: “Acho legal as pessoas conhecerem, já que não há registro em vídeo disso”. Ao lado de Estrela, deverão figurar, nas demais faixas, entre outros, Ná Ozzetti, Arnaldo Antunes e Anelis Assumpção, filha de Itamar.
OrgasmO e LsD
As primeiras gravações oficiais de canções com letras assinadas por Leminski vieram nos anos 1970, da parceria com o cantor e guitarrista Ivo Rodrigues (1949-2010), seu companheiro de cerveja e churrasco, da banda A Chave: os rockabillies Buraco no Coração e Me Provoque pra Ver, registrados em compacto simples da gravadora GTA, da extinta Rede Tupi, em 1977. Outras sete canções da dupla foram gravadas em LP nos anos 1980, pela nova banda de Ivo, a Blindagem. O poeta admirava o músico, com quem aprendeu muitos truques no violão: “Ivo, você é um dos melhores intérpretes de rock do Brasil, cantando de jeans e camiseta. O que você tem se chama talento”.
Foi Caetano Veloso, ao gravar “Verdura”, no vinil Outras Palavras (1981), quem abriu as portas e as cortinas de um palco iluminado para Leminski. Tudo ficou mais fácil depois – afinal, trata-se de uma canção com letra e música do poeta, daí a importância do aval de Caetano. Por intermédio dele, Leminski conheceu Moraes Moreira, com quem criou pelo menos dez canções e um sucesso (com coautoria de Zeca Barreto): Promessas Demais (1982), tema de abertura da novela Paraíso, da Rede Globo, na voz de Ney Matogrosso. Sobre a sensação de ouvir sua própria canção tocando na televisão, ele disse: “A coisa mais parecida com isso é o orgasmo”.
A parceria com Moraes virou amizade. Leminski e a poeta Alice Ruiz, com quem ele foi casado por 19 anos, chegaram a se hospedar na casa do músico, no Horto Florestal, no Rio de Janeiro, onde a dupla faria a maioria das canções. O cantor baiano conta que, num desses encontros, diante da perspectiva de passar uma tarde chuvosa compondo e bebericando, os dois decidiram tomar um LSD: “Estávamos na expectativa do efeito da droga, dedilhando o violão, quando Leminski levantou-se bruscamente e denunciou: ‘Porra, esse ácido é fajuto! Mais de meia hora e nenhuma rima!’”.
Na convivência com a nação baiana, num verão histórico de 1980, o curitibano dobrou- se à evidência de um Brasil tropical. Em Salvador, sob um sol inclemente, foi celebrado como um grande poeta e letrista, amigo de Caetano e Gilberto Gil, quando as colunas sociais soteropolitanas registravam reluzente concentração de celebridades nas areias do bairro da Boca do Rio. Da cidade, sairia seu novo parceiro musical: Paulinho Boca de Cantor, integrante dos Novos Baianos, que gravou Valeu (1981), letra e música de Leminski.
Farinha do mesmo saco
A experiência de compor, em 1984, com Guilherme Arantes, a trilha sonora do espe- cial infantil Pirlimpimpim 2, programa da Globo com personagens do Sítio do Picapau Amarelo, não seria muito digestiva. Foram dez músicas de um disco que não chegou a empolgar nem mesmo o poeta, apesar do relativo sucesso, entre as crianças, da faixa Xixi nas Estrelas. Ele justificava: “Faltou química entre mim e o Guilherme”.
Por outro lado, química foi o que não faltou entre ele e Itamar Assumpção, o Nego Dito. Conheceram-se num show de Arrigo Barnabé em Curitiba, quando Itamar passou três dias hospedado com seu violão na casa do poeta, no bairro do Pilarzinho. Considerando o pendor marginal de cada um, eles eram farinha do mesmo saco. O encontro resultou em amizade e parcerias, começando por Vamos Nessa, gravada por Itamar no LP Sampa Midnight, em 1986.
Itamar depois tornou-se um dos “parceiros póstumos” de Leminski, compondo canções a partir de poemas antigos. Dor Elegante (1998) e a surpreendente Custa Nada Sonhar (1993) foram musicadas por ele. Do mesmo modo, com versos do poeta, Arnaldo Antunes concebeu Além Alma (1998) e José Miguel Wisnik fez, em 1992, Subir Mais e Polonaise (1992), esta baseada na tradução por Leminski de um poema do polonês Adam Mickiewicz.
Não mexa comigo eu me mexo soziNho
me deixe ser eu mesmo
eu Não me mixo, bicho, pra NiNguém
já caNsei de esticar o fio da esperaNça quem espera Não me alcaNça
quem foi tem que voltar
****
adão Nasceu pelado
e Nada é o que ele tiNha
me explica, viziNha, me explica como é que tem geNte rica como é que tem geNte rica
Herança
Embora identificado como um “colecionador de guardanapos de papel”, o curitibano era zeloso no trabalho braçal da literatura. Durante as noitadas pelos bares, acumulava anotações que seriam resgatadas horas depois, diante da máquina de escrever Remington. Muitas letras nasceram assim. É possível que a produção mais ameaçada por falta de registro formal (ou pelo esquecimento) seja justamente a de suas canções. Excluindo aquelas gravadas por músicos profissionais, muitas foram feitas com parceiros desconhecidos e ocasionais e não estão em discos. Houve também um roubo no sítio onde o escritor morava, em São Paulo, quando ladrões levaram o violão e fitas cassete com ensaios e estudos. Apesar do empenho da família na preservação dessa memória, algo pode ter se perdido.
Há ainda bastante coisa inédita. Certa vez – e lá se vão 30 anos –, Leminski escreveu uma balada inspirada nos tempos modernos, falando de uma asfixia urbana (veja letra no box). A canção, batizada de Escafandro, veio acompanhada de uma proposta performática: o intérprete deveria agir no sentido inverso ao convencional, esvaziando os pulmões antes de cantar. O resultado, não gravado, mas presenciado por este biógrafo, na voz clara e forte do parceiro Ivo, transformada num fio de respiração, era dramático e convincente.
Passadas mais de duas décadas desde a morte de Leminski, essa parte da obra deve ser reavaliada, à luz dos relançamentos e descobertas. Em texto do livro Toda Poesia, José Miguel Wisnik situa com propriedade que “há quem faça canção com acurado conhecimento de causa musical”, como Tom Jobim, e “há outros que trabalham só com um violão do qual não dominam mais do que dois ou três acordes”.
O resultado é que, muitas vezes, as soluções simples encontradas pelo músico popular dispõem “de um frescor e de uma força criativa genuína”. Contrariando o conceito depreciativo de “berimbau de barbante”, do poeta e crítico Bruno Tolentino, em referência ao que ele entendia como rota furada dos que se deixavam influenciar pelo modernismo paulista, pela poesia concreta e pelo deslumbramento da música popular, Wisnik observa que, no caso de Leminski, “o grande e o pequeno, o insight e o derrisório, confinam-se intimamente como aspectos da mesma matéria, seu arco e sua lira. Nela, o ‘berimbau de barbante’ toca música”.
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Toninho Vaz é jornalista, autor da biografia Paulo Leminski – O Bandido que Sabia Latim.
Colaborou a repórter Karen Monteiro.
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Matéria originalmente publicada na Bravo 190 de junho 2013 e atualizada em 2024