Um palacete para chamar de nosso
Na contramão do capitalismo, que corta gastos e pessoas para manter lucros, Casa de Francisca expande e abre novos espaços para garantir sua sobrevivência
“Quando saímos do endereço antigo e viemos para o Centro, não foi pelo desejo de expandir, e sim permanecer. É exatamente o que está acontecendo agora”, conta Rubens Amatto, fundador da Casa de Francisca. Há menos de um mês de inaugurar dois novos espaços no Palacete Tereza, endereço na região da Praça da Sé, ele não esconde a alegria e também a apreensão de estar apostando em um projeto tão grandioso em uma das partes mais complicadas do Centro paulistano.
No dia 8 de março, a Casa de Francisca, localizada até então no primeiro andar do Palacete Tereza, desdobra-se no térreo e também no porão. De frente para o Largo da Misericórdia, um bar de discos de vinil chamado Largo também promete uma programação de apresentações musicais na rua gratuitas. Embaixo, no subsolo, um cineteatro com configuração de arena passa a oferecer, obviamente, sessões de cinemas e de peças teatrais, mas também encontros literários, apresentações musicais e até mesmo baladas até altas horas da madrugada.
Os planos começaram há cerca de um ano e meio, quando o Brasil começava a sair da pandemia da Covid-19. Naquele momento, muitos comerciantes tradicionais e outros negócios abandonavam o Centro, fruto de falências e outras consequências dos quase dois anos de lockdown. Outrora local onde ficava a primeira loja de música da cidade e também a Rádio Record nos anos 1940, o Palacete Tereza viu seus outros inquilinos fecharem suas portas. De repente, não havia mais nada aberto no entorno da Casa de Francisca à noite, e o pior poderia acontecer a qualquer momento.
“O Centro sofreu um impacto muito grande. Teve o impacto da miséria, do aumento exponencial das pessoas em situação de rua, da desigualdade social do país, que já era uma catástrofe e que explodiu ainda mais com o governo que tínhamos”, lembra Rubens. “Depois de oito anos aqui, vivemos nitidamente a experiência de saber que a cidade só é segura quando está ocupada. Quando ela está viva. Quando o Centro passou a ser desocupado, foi a primeira vez em muitos anos que passamos a ter medo.”
Das janelas do primeiro andar do Palacete Tereza, as mesmas nas quais os grandes nomes da Era de Ouro do Rádio se debruçaram para cantar para o público transeunte quando a Praça da Sé era o principal ponto da cidade, Rubens vislumbrou um Centro diferente, onde não apenas a rua Quintino Bocaiuva mas todo o calçadão tombado pelo patrimônio histórico voltasse a respirar vida, alegria, arte e cultura: “Seriam espaços que pudessem fortalecer a Casa no momento mais complexo e difícil do Centro, e que pudesse de alguma maneira também fortalecer o pedaço em que estamos”, ele diz.
Nossa conversa aconteceu exatamente um mês antes da abertura dos novos espaços, em 8 de fevereiro, dia em que o trio Metá Metá fez um grande show na Casa. A ocasião era mais do que especial: naquele dia, a Francisca estava alcançando a maturidade, 18 anos, sendo 10 em seu primeiro endereço, no Jardim Paulistano, e outros 8 na Sé.
Rubens, empolgado como nunca, explica que o momento é de honrar o próprio Palacete e sua história: “Quando conheci os donos do imóvel pela primeira vez, me disseram algo que foi muito impactante: ‘Nosso desejo é devolver o Palacete pra cidade. É transformar o Palacete em um espaço de convivência, em um espaço de arte e cultura.’ Só que isso tinha que ser feito aos poucos”. Oito anos depois, a hora é agora.
Nesta conversa, Rubens Amatto falou sobre a condição atual do Centro, explicou como a Casa de Francisca enfrentou os piores momentos da pandemia, e protestou contra o abandono do poder público a uma região tão linda e importante da cidade. Revelou as primeiras atrações dos novos espaços e como será a grande festa de abertura – gratuita, na rua, com Lia de Itamaracá comemorando seus 80 anos e outras grandes mulheres da música brasileira contemporânea – e, claro, nos deu uma lição de esperança, de sociabilidade e de dias melhores. Confira:
Como surgiu a ideia de expansão da Casa de Francisca?
Quando saímos do endereço original, que carinhosamente chamávamos de menor casa de shows de São Paulo, porque eram só 44 lugares, foi um processo natural de precisar encontrar um novo espaço não pelo desejo de aumentar, mas sim de durar e permanecer. Se pudéssemos teríamos passado a vida inteira lá, mas sabíamos da fragilidade de uma casa tão pequena. Era preciso achar um espaço mais viável e ser mais sustentável. Quanto menor você é, quanto mais artesanal você é, mais caras são as coisas. É por isso que as pessoas fazem coisas em umas escalas tão grandes, para aumentar suas margens, e para… Consequentemente, muda a relação que você tem com o público, com a qualidade das coisas que você oferece, porque volume é um negócio surreal, né?
Quando saímos de lá, não foi pelo desejo de expandir, e sim permanecer. É exatamente o que está acontecendo agora. Durante a pandemia, ficamos extremamente ameaçados, chegamos a anunciar que provavelmente fecharíamos. E, sinceramente, não esperava a resposta tão grande do público naquele momento em que o mundo estava acabando, em que havia muitas pautas mais emergenciais do que a preservação de uma casa de música.
Até fiquei constrangido, relutei por um tempo até fazer a campanha de mantenedores, porque eu sabia que não era uma vaquinha simples resolveria o problema. Estávamos ainda sem luz no fim do túnel, a pandemia não tinha previsão de acabar. E estávamos em um buraco, conseguimos manter o máximo da equipe por um ano, mas depois de um ano e meio começamos a afundar na dívida sem saber quando voltaríamos. Constrangido mas incentivado por amigos próximos, fiz a campanha e tivemos uma adesão de mais de 1.500 pessoas que colaboraram por um período de quase dois anos. E tem quem colabora até hoje.
Para além de uma ajuda financeira que foi importante, mas longe de resolver os problemas, a campanha deu uma injeção de motivação para atravessar a pandemia. Porque muita gente falava da importância de lugares como a Casa de Francisca na cidade. São Paulo, deste tamanho, a metrópole mais rica da América Latina, é um lugar completamente carente de palcos independentes. Posso afirmar com todas as letras que dá para contar nos dedos, mesmo somando os palcos centrais com os periféricos. Há cada vez mais palcos grandes, mas não palcos para música de invenção, para música autoral, para a música tradicional, de pesquisa. São poucos e duram pouco, também.
Ao mesmo tempo, outros estabelecimentos da região foram fechando, o Centro foi deixado abandonado.
Sim, estou contando isso tudo porque depois que atravessamos a pandemia, o Centro sofreu um impacto muito grande. Teve o impacto da miséria, do aumento exponencial das pessoas em situação de rua, da desigualdade social do país, que já era uma catástrofe e que explodiu ainda mais com o governo que tínhamos…
E aí o que aconteceu? Explodiu a miséria humana de famílias que até então conseguiam ter dignidade em uma moradia, um pequeno emprego. Aumentou o número de famílias nas ruas, filas e filas de gente precisando de comida. Consequentemente, acontece que qualquer campanha forte, qualquer coisa que acontece no Centro expandido, toma uma proporção em notícia e em impacto de proporção completamente outra em relação ao que acontece nos Jardins ou em Pinheiros.
Por muitos anos que ficamos no Jardim Paulista, sofremos uma série de violências. Mas as coisas não eram nem noticiadas. E, nos oito anos que estamos aqui, as situações de violência foram mínimas. Só que no ano depois da pandemia, passamos realmente a viver preocupados aqui no Centro, porque sentimos um abandono total em relação à zeladoria, à segurança, às pessoas em situação de rua. Começou a ter uma debandada de comércios tradicionais, que quebraram ou abandonaram o Centro.
Passamos a considerar que era muito favorável para o mercado imobiliário deixar chegar nesse ponto, como aconteceu em outros bairros. Porque dava para ter havido uma intervenção, um apoio. E deixaram chegar no estado no qual rolou uma debandada do Centro, e quase fomos juntos. Nesse momento, inquilinos tradicionais aqui do Palacete Tereza saíram…
Os espaços que vocês assumiram.
Sim. Eram justamente os espaços que a antiga Casa Bevilacqua tinha. Trata-se da primeira loja de instrumentos musicais de São Paulo, que por muitos anos também foi referência em acessórios de música e partituras. Na época áurea dos discos de vinil, a loja térrea da Bevilacqua ficava exatamente na esquina do Largo da Misericórdia, e existem fotos incríveis de filas e filas de gente comprando discos. E o porão era interligado com a loja térrea. Lá embaixo era o espaço dos pianos, dos instrumentos.
No mesmo período em que o primeiro andar era a Rádio Record.
Isso! Depois que a rádio sai, a loja também, e começa a ter uma decadência grande aqui no Centro. Isso, talvez, tenha se intensificado nos últimos 20 ou 30 anos. A loja térrea, que pra mim é a mais emblemática aqui do Palacete, porque tem o maior pé direito do prédio, virou uma loja de telefonia. Todas as operadoras de celular estiveram aqui, até que saíram fora também. E o porão havia sido ocupado como o refeitório de uma loja de sapatos da região.
Quando esses dois espaços foram colocados para aluguel, e começamos a ver um monte de placas de Aluga-se no Centro, pensamos: “O que vai acontecer nesses espaços emblemáticos?” Até que fomos conversar com os administradores do prédio, que são pessoas muito empenhadas e comprometidas com a história do Palacete. São pessoas que, quando conheci, me disseram algo que foi muito impactante: “Nosso desejo é devolver o Palacete pra cidade. É transformar o Palacete em um espaço de convivência, em um espaço de arte e cultura.” Só que isso tinha que ser feito aos poucos, porque o restauro gigantesco que aconteceu aqui foi por iniciativa própria, sem nenhum apoio público.
Mas o palacete é tombado, não?
É tombado, mas por conta do esforço enorme dos administradores, que realmente têm uma relação afetiva com o imóvel.
Então, abrimos essa conversa sabendo que não estávamos num momento em que tínhamos recursos. Estávamos nos reerguendo, mas diante de tudo o que estava acontecendo, queríamos ver a possibilidade de alugar esses dois espaços. E eles foram muito generosos em topar que nós… Não só topar, em confiar que poderíamos dar conta de ocupar novos espaços. Isso tem um ano e meio.
Quando rolou essa confiança, passamos a pensar nas possibilidades de ocupar esses lugares de maneiras complementares à Casa de Francisca. Seriam espaços que pudessem fortalecer a Casa no momento mais complexo e difícil do Centro, e que pudesse de alguma maneira também fortalecer o pedaço em que estamos.
Entramos em uma linha de crédito de incentivo do Governo do Estado, uma linha com juros super baixos que nenhum banco pratica, que te deixa pagar em 10 anos. É bem rigoroso, te coloca sob uma série de análises. Ali, foi a primeira vez que passamos por um crivo de sermos financeiramente saudáveis. Fiquei muito feliz, porque até então eu sabia que era saudável artisticamente [risos], mas financeiramente é sempre uma luta muito grande.
Estamos conversando hoje, exatamente um mês antes da abertura dos novos espaços, dia em que a Casa de Francisca completa 18 anos. Como você está se sentindo nesse momento?
Mesmo estando na contramão das coisas do Centro, estou muito otimista e feliz. Tenho visto cada vez mais a casa cheia, cada vez mais as pessoas precisando se alimentar de encontros. Depois de uma pandemia, as pessoas não aguentam mais ficar em casa. E a nova geração foi muito impactada e ainda continua… muito dessas gerações Z, H, não sei o quê, estão presas nos quartos com dificuldade de convivência social, com fobia. Só conseguem se relacionar pelo videogame ou pelas redes, não é? Então, passamos a se orgulhar…
Para além da música e da gastronomia, um aspecto que Casa passou também a mergulhar mais a fundo, sempre tivemos um desejo de ser um espaço de encontro e de convivência. E agora nos enchemos de esperança e otimismo para encarar esse novo ciclo, um ciclo de fortalecer os encontros, de mudança também, porque precisa, né? De abrir novas formas de vida, novas formas de dialogar com outras artes, de dialogar com a cidade.
Com a rua, não é?
Estar na rua sempre foi um sonho. E o projeto, nesse pedaço da cidade tão emblemático, é o único em funcionamento à noite no Calçadão.
Me conta sobre esses novos espaços, então.
No térreo vamos fazer um bar de discos, que vai fazer uma singela homenagem à tradição do vinil… Peraí que meu filho está ligando.
Rubens atende o filho pelo celular. Conversa, e então desliga…
Quantos anos?
Quinze, cara.
Que doideira. Eu não sabia.
A Casa é minha filha mais velha, com 18 anos. E tenho o Francisco, que tem 15.
Quem era Francisca?
Francisca foi o nome da primeira moradora do nosso antigo endereço. E aí fomos descobrindo aos poucos a história da casa, e também ouvindo muito o que ela nos dizia.
Temos uma relação de muito interesse com arquitetura e urbanismo, né? Então… Eu não acho que você tem que ter uma ideia e jogá-la dentro de um lugar. Acho que você tem que ouvir o lugar, o espaço, o entorno, e a partir disso entender o que aquele lugar está te dizendo, o que ele comporta.
Pra mim, uma casa, por exemplo, ela tem não só memória, como se comunica através da arquitetura. E um espaço público, que tem uso público, apesar de ser privado… Existe uma coisa que aprendi muito, que levo em conta quando vamos pensar nos projetos, porque eu me atrevo a desenhar também, é sobre o fluxo, enquanto as pessoas pensam muito a arquitetura como…
Espaço parado para receber gente.
É… pensam em quais são as paredes, onde vai ser isso, onde vai ser aquilo. E passei a entender que a arquitetura é muito mais importante às pessoas do que como elas fazem uso dos espaços, do que a arquitetura puramente. Para mim, arquitetura é circulação, é uso, são as pessoas.
E assim, passei a entender o quanto as pessoas são muito mais importantes do que a arquitetura, o quanto as pessoas são muito mais importantes do que a música, ou do que… Tudo isso são elementos que fazem as pessoas conviverem, se encontrarem. Então, estamos sempre ouvindo muito o que os espaços estavam nos dizendo.
Quando nos mudamos para cá, foi um processo longo não só do restauro, que foram quase quatro anos, mas nossa obra também demorou mais um ano e meio, um tempo em que ficamos vendo cada detalhe para conseguir encontrar a melhor maneira de receber as pessoas, os artistas, de promover esses encontros. E agora, depois que conseguimos alugar esses novos espaços, passamos mais um ano e meio elaborando o que seria, escutando, pesquisando o que aqui já tinha sido.
Então, o Largo, que é o nome do nosso espaço de rua, o espaço exatamente na esquina do Largo da Misericórdia, embaixo do nosso palco do primeiro andar, vai ser um bar de discos que todo fim de tarde receberá um DJ que vai apresentar a sua pesquisa, sua curadoria em vinil para a rua e para a calçada.
Enquanto as pessoas estão saindo do trabalho…
Enquanto as pessoas estão saindo do trabalho, exatamente. Um momento em que não vamos atrapalhar o horário comercial. Então, no fim de tarde vamos fazer essa programação, e aos finais de semana vai ter música na calçada, que aí vai desde roda de samba até outros gêneros.
Como ficou a liberação de alvará para esses eventos? Tem que pedir um novo a cada ocasião?
Já temos autorização para ocupar a calçada com mesas, mas não pretendo colocá-las porque justamente os espaços que colocam mesas na cidade, de um modo geral, principalmente na região do Centro, fazem uma coisa que me incomoda muito, que são os cercadinhos.
E aí, obviamente, você vai me perguntar: “mas como você vai lidar com a violência? Como vai lidar com a abordagem das pessoas que estão em uma situação de vulnerabilidade, que vão querer se alimentar ou pedir água?” É esse o meu desejo, de encontrar uma solução. Porque depois de oito anos aqui no Centro, vivemos nitidamente a experiência de saber que a cidade só é segura quando está ocupada. Quando ela está viva. Quando o Centro passou a ser desocupado, foi a primeira vez em muitos anos que passamos a ter medo.
Então, nosso primeiro desejo é trazer vida noturna para esse pedaço da cidade. Porque o CCBB fecha, a Caixa Cultural fecha, os botecos fecham e o lugar, que é vivo, morre. Por quê? Porque as pessoas não têm interesse em empreender no Centro de São Paulo… Vou me corrigir. Não têm interesse em empreender no Centro antigo de São Paulo, no Centro histórico de São Paulo.
Onde mexe com o maior tabu do paulistano, né? Andar a pé…
O paulistano da classe média não sabe, entra em pânico sem carro. E quando as pessoas ligam aqui na casa e fazem a pergunta se, por exemplo, aqui tem valet, adoro responder, quando as pessoas são mais agressivas, que não temos valet, mas temos as próprias pernas.
Então, as mesmas pessoas que se encantam em andar pelas ruas e calçadas europeias querem um Centro via carro, querem um Centro via valet. Elas estão sempre com esse olhar, não é? A cidade colapsou porque ela foi feita pelo ponto de vista do carro, da indústria do carro. E o pedestre, as pessoas sempre foram sucateadas. Enquanto isso, aqui é um dos últimos espaços da cidade a privilegiar o pedestre, onde ele é ainda mais importante que os carros. Graças ao tombamento e a Oxalá, no Centro histórico não entra carro.
Já o Centro novo tem cada vez mais iniciativas, porque existe uma grande comunicação. Existe uma segurança para o público de classe média e classe alta através da lógica do carro. É muito menos arriscado para os projetos empreenderem ali.
E acho que cada vez mais as pessoas têm que perceber que, primeiro, o Centro de São Paulo ainda é um dos lugares mais democráticos da cidade. Quando as pessoas falam em revitalização, quando falam em reivindicação, quando falam em revitalizar o Centro, elas estão trazendo o pensamento de higienizar o Centro. Querem transformar o Centro em um novo Jardim, onde só uma determinada classe pode usufruir. E o Centro tem a vocação de ter moradia popular, moradia para a classe alta, comércio popular, comércio para casas de música, bares e restaurantes, para toda a cidade. A cidade é composta… A riqueza da cidade é isso, não é?
E não só para a cidade. A cidade está sendo transformada em um lugar de reivindicação, onde as pessoas estão vivendo em bairros segmentados, bairros dormitórios, onde as pessoas não transitam pelas ruas. Cada vez mais, os bairros estão perdendo a sua identidade de bairro. Estão virando zonas de condomínios, ou comércios de shoppings. E assim, a cidade vai adoecendo, perdendo suas identidades e morrendo.
Por isso, temos que entender que a cidade está aumentando o abismo da violência social e da desigualdade e da segregação. Entende? Então, o meu… Fico com medo de falar em romantismo… Mas, meu ideal, o meu desejo de cidade, a minha batalha aqui na Casa, o nosso desejo… Não é só a cidade, é o desejo cada vez mais comum de pessoas que percebem o quanto são importantes os espaços de convivência.
E como está o Centro nesse momento?
Posso te afirmar que esse trecho do Centro está muito seguro. Mas há seis meses estava completamente violento. O policiamento estava abandonado e os comerciantes estavam abandonando esse pedaço da cidade. As ruas estavam desertas.
Agora, está vindo uma reação. Porque, a partir do momento que o poder público faz o mínimo de garantir a segurança, a zeladoria, as pessoas voltam a frequentar. O comércio volta a acreditar. E torna o lugar seguro. Então, estamos em um momento de otimismo, apesar de saber, de ter muito pé atrás, que essa reação que está acontecendo… Nós esperamos que não seja uma reação por ser um ano eleitoral, mas neste momento estamos numa situação de segurança – apesar que a Casa também tem que investir na segurança privada para que, quando o poder público não fizer o papel dele, tenhamos a retaguarda para garantir a dignidade possível das pessoas que estão frequentando o nosso espaço.
Te conheço há bastante tempo pra imaginar que seu bar de discos de vinil não será um desses listening bars que tomaram o Centro novo…
O meu não é isso, não, hein? [risos] Na verdade, já tinha essa ideia de discos há muito tempo, por conta da vocação… O prédio tem duas vocações. Eu, como apaixonado pela cidade, e pela relação que eu acredito termos com toda a nossa ancestralidade, acho que temos que pedir licença para as coisas. E temos que ver o que esse lugar está nos dizendo, como ele já foi ocupado.
Não sei se você sabe ou se já te contei, mas a esquina que estamos abrindo agora, que estamos chamando de Largo, esse espaço é uma reverência não apenas ao Largo da Misericórdia, mas a todos os Largos, que já tiveram um papel tão importante na cidade, mas se tornaram espaços inóspitos. E o Largo da Misericórdia, muito antes de ser a da Bevilacqua, e muito antes de ter a tradição em torno da música, e muito antes de ter sido conhecido como a esquina musical de São Paulo, foi simplesmente o local do primeiro chafariz de água pública da cidade. E Tebas, quem esculpiu e fez o chafariz da Misericórdia, foi o primeiro escravizado a se tornar um arquiteto na cidade.
Esse chafariz da Misericórdia, numa São Paulo escravocrata, era o ponto de encontro dos escravizados que vinham abastecer uma cidade que ainda era um vilarejo, que era só esse pedacinho aqui. O Largo da Misericórdia era também o ponto de rebelião, porque era o lugar onde eles podiam se encontrar, tanto é que depois aqui se tornou a Rua dos Pretos. E a Igreja da Misericórdia teve um papel assistencial muito grande, depois virou Santa Casa da Misericórdia, que é super importante até hoje. Aqui também era um lugar de festividades, chegou a ter a festa junina mais importante da cidade.
Então, São Paulo tem essas camadas de memórias de cidades soterradas, e quando passamos a ocupar algum lugar… Não sou eu que vou entrar, pintar de branco e falar: “Agora isso aqui vai ser uma farmácia”. Então, é essa relação que estamos tendo com o bar de discos, que é muito diferente dessa moda que está acontecendo agora dos listening bars.
O nosso bar de discos é para rua, não é um bar intimista de escuta silenciosa. É um bar que vai se misturar na paisagem sonora, um bar que vai convocar o transeunte a parar na calçada e a escutar música que ele não ouve nas rádios. Aí queremos chamar quem realmente tem uma relação de pesquisa com o vinil, com música brasileira, latino-americana e música africana. Esse é o recorte.
E, o que queremos com isso? Parafraseando a família do prédio que trouxe o desejo de devolver o Palacete para a cidade, queremos devolver a música para a cidade. A música sem o julgamento… longe de ter um julgamento de boa ou má música, mas um certo tipo de música que não tem espaço no mercado, que não está na indústria fonográfica, nos jabás das rádios
Confesso que fiquei um pouco com essa preocupação de como fariam a leitura desse bar, se cairiam para um bar desses mais elitizados, mas não. Inclusive, este é um projeto novo, que busca abrir diálogo e uma série de pautas que não conseguimos abrir ainda aqui no espaço do primeiro andar. Já passou a fazer, por exemplo, algumas iniciativas que a gente não publiciza muito, preocupados com, por exemplo, a inclusão racial aqui na Casa, muito preocupados em relação a uma Casa que faz uma música eminentemente negra, ter um público majoritariamente branco. Então, qual é o papel da Casa em relação ao acesso, à inclusão? E qual é o papel da Casa em relação ao entorno?
Então, esse espaço que vai trazer música pretende abrir diálogos para uma série de pautas ligadas à cidade.
E o porão, de refeitório passa a ser o quê?
A primeira coisa que fizemos foi interligá-lo novamente com o térreo, voltamos para a arquitetura original. E lá embaixo tornou-se uma espécie de Cine Teatro, uma homenagem singela aos cinemas dos Centros das grandes cidades. O Kleber Mendonça fez um filme maravilhoso, Retrato dos Fantasmas, que mostra isso como ninguém. E o Kiko Dinucci, muito antes do Kleber, fez um filme que vamos exibir chamado Breve em Nenhum Cinema, um filme experimental maravilhoso que mostra o fim dos cinemas de rua de São Paulo.
Os cinemas de rua nas grandes cidades tiveram um papel importante para muito além do cinema. Eles eram espaços de música também, de debates, de encontros. Espaços políticos em palacetes muito parecidos. Nosso Cine Teatro terá cinema, mas não se resume a uma sala. É um espaço híbrido que, durante o dia, enquanto não tiverem atividades, será aberto ao público oferecendo jogos. Será um espaço de descompressão e de convivência, com sinuca, ping-pong e música de graça.
E, nos momentos em que tiverem atividades acontecendo, sejam debates que vamos promover, sejam filmes, ou uma programação noturna mais voltada a pequenos shows e a festas – algumas com cobrança e ingresso. Mas, sempre que possível, ele vai estar aberto.
Você tem planos para uma rádio também?
Vamos fazer. Vou te confessar, não tive coragem de chamar o espaço de Cine Rádio, achei que soaria muito pretensioso. E, quando falo em Cine Teatro, fica viável a compreensão de que também é um anfiteatro, um auditório, é uma arena. Tem formato de arena, mas quando tiramos o mobiliário, vira um grande salão de dança, por exemplo, uma gafieira até!
Mas quero fazer uma programação de rádio digital para registrar uma série de encontros que vamos fazer tanto lá embaixo quanto aqui no térreo e no primeiro andar. Para que possamos a fazer um negócio que ainda não tive fôlego, que não é só fazer um acervo, mas também poder difundir a cine lives que fizemos na pandemia, com 20 cineastas e artistas emblemáticos, com transmissões que chegaram a ser transmitidas até no Japão, na Europa e nos Estados Unidos.
Com esses novos espaços, os formatos de shows do primeiro andar ficam consolidados, ou há novidades também?
Na verdade, estamos sempre mudando. Eu não acredito em nada… A partir do momento que achar que chegamos em um formato, que está pronto… Aí morreu, entende?
Neste ano, por exemplo, será muito intenso para os shows em pé. Vamos mexer também nos nossos almoços, que, por causa da pandemia, passaram a ter um atendimento muito convencional nas mesas. Agora, vamos voltar a fazer as pessoas circularem, olharem a vitrine, receber os pratos. Porque isso é o que faz as pessoas se esbarrarem, se conhecerem, saírem das mesinhas delas, onde ficam só levantando o braço. Então, somos um restaurante também, mas não queremos ser um lugar onde a pessoa vem, senta, consome e vai embora. Queremos que as pessoas se relacionem com o espaço, que vão conhecer os corredores, que vão conhecer a cozinha, que vão tropeçar em outras pessoas…
Vão olhar pelas janelas…
Sim, olhar pelas janelas, ver a cidade por outro ângulo… Então, basicamente, a casa continua se transformando desde que começou lá atrás. O primeiro andar também está em transformação, montamos um salão de espera, um segundo ambiente com bar. Então, não precisamos… O ser humano é tão complexo, cara. A nossa música é tão diversa. Por que precisamos ser sempre a mesma coisa? Então, de alguma maneira, essa inquietação, ela nos motiva a estarmos nos reinventando constantemente.
Sei que você não gosta de contar as coisas muito antes da hora, mas pode falar sobre a abertura do dia 8 de março?
Será Dia da Mulher, e a ocasião não foi escolhida à toa. Francisca e Tereza são mulheres, não é? Vamos fazer um show de graça na rua, com cinco grandes artistas. Vai começar às seis da tarde com uma grande roda de samba com a Graça Braga no Largo da Misericórdia. E aí vai ter um palco inusitado na outra esquina para comportar o público na rua e ter um fluxo viável, com quatro shows. Lia de Itamaracá, celebrando 80 anos, Mônica Salmaso, lJussara Marçal e Alessandra Leão. Vão ser quatro shows, quatro gêneros que são bem diferentes um do outro, ao mesmo tempo que dialogam entre si.
Vamos inaugurar os dois novos espaços nessa ocasião, eles vão estar abertos para que o público possa acontecer, mas as atividades vão estar concentradas na rua. E aí aos poucos, na sequência, vamos abrindo com algumas programações nos dois espaços, porque não temos a pretensão de abrir algo pronto. Vai abrir da melhor forma possível,
mas o espaço só vai se fazer quando compreendê-lo no dia a dia, entende?
Posso te adiantar também que no dia 9 de março haverá um dos shows mais emblemáticos da história da Casa, na minha opinião. O primeiro show noturno no porão será o Arrigo Barnabé tocando Caixa de Ódio [interpretações de músicas de Lupicínio Rodrigues]. O filme do Kiko será exibido no dia 7, numa pré-abertura. E vamos fazer algumas festas com DJs para celebrar ali também
Então queremos ter um diálogo maior com o cinema, com a literatura, com o teatro… Porque percebi que os segmentos artísticos não dialogam, que a galera do teatro só frequenta teatro, que a galera da música só frequenta shows, a galera da dança só frequenta dança, do cinema, só cinema… E é tão importante que furemos essas bolhas, não é?
Agora eu fiquei curioso. Vamos lá ver os espaços?
Vamos!