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Autenticidade e talento de Amy Winehouse fazem falta na música pop

Amy faria 41 anos em 2024, aqui, recuperamos uma reportagem especial do nosso acervo para homenagear uma das maiores vozes da música inglesa

Por Arthur Dapieve
3 ago 2024, 09h00
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Amy Whinehouse estrelou a capa da Bravo! em janeiro de 2011, seis meses depois a morte trágica da cantora chocaria o mundo (Acervo Revista Bravo!/acervo rede Abril)

Apenas à primeira vista, e bastante apressada, Amy Winehouse se confundia com outros frequentadores habituais dos jornais, revistas, canais e sites de fofocas dos anos 2000. Quando a vida profissional cai em ponto morto, a tática de criar um bom escândalo e assim movimentar as coisas pode até funcionar – por certo tempo – para celebridades e “celebridades” de todos os campos da atividade humana. E decerto casa perfeitamente com a mística de excessos há muito associada à música pop.

No caso da cantora inglesa que nos deixou precocemente aos 27 anos por envenenamento de álcool (uma “morte acidental”, segundo o laudo médico da época), porém, os barracos nunca foram seus aliados. Ao contrário, prejudicaram a sua carreira, congelando-a e privando os seus admiradores de novas canções e CDs.

 

Amy tornou-se tão popular no país que dois dos programas de televisão mais assistidos nos anos 2010, os humorísticos Casseta & Planeta e Pânico na TV, tiveram-na como personagem, uma bêbada desbocada e nauseada. Não é improvável que, em 2011, muita gente tenha comprado ingressos para os quatro shows no Brasil na expectativa de ver um vexame histórico. Inclusive porque há quem acredite que os escândalos em série eram parte deliberada do seu show. Não eram. Amy foi “the real thing”, foi autêntica.

Ela se filiou a uma longa linhagem de músicos que se destruíram no auge e se foi em uma idade particularmente perigosa para ícones pop: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e Kurt Cobain, todos morreram aos 27 anos, com o álcool e outras drogas sempre desempenhando um papel importante, às vezes indireto, uma fatura apresentada por excessos passados. Os fãs brasileiros e a mídia ainda não sabiam, mas a turnê no nosso país foi a última da artista. 

“Eu canto Lullaby of Birdland toda noite/ Ava era a manhã, agora ela se foi/ Ela renasceu Sarah Vaughan/ No santuário que descobriu”

Trecho de “October Song”, de Amy Winehouse. Tradução de Arthur Dapieve

5 Grammies e 12 milhões de cópias de discos vendidos 

Frank, o disco, era incrivelmente complexo, em especial para uma garota daquela idade. Abria com uma introdução que era puro scat, aquele improviso vocal sem palavras tornado perfeito por Ella Fitzgerald. No refrão da linda October Song, ela chegava ao requinte de citar, sobre uma batida de hip-hop, o standard de jazz Lullaby of Birdland. Para a maioria das 900 mil pessoas que logo compraram o CD apenas na Grã-Bretanha, aquilo deve ter passado, despercebido, como uma piada particular.

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Em contrapartida, era clara a referência às wags, acrônimo em inglês para “esposas e namoradas” (de craques da Primeira Divisão) em Fuck Me Pumps: “Nunca perde uma noite, porque seu sonho na vida/ É ser a mulher de um jogador de futebol”. Três anos depois, em 2006, Amy lançaria o disco que a fez explodir no resto do planeta, Back to Black.

Dessa vez, as referências musicais eram outras, embora ainda pertencessem – o título deixava isso evidente – ao riquíssimo universo da música negra norte-americana. “Não queria louvar o jazz de novo”, Amy declarou na ocasião. “Estava cansada da complicada estrutura de acordes e queria algo mais direto. Vinha escutando muitos grupos de cantoras dos anos 1960 e queria simplificar o som.”

Desde criança, na verdade, ela era fascinada por grupos de meninas negras e vozes maleáveis, como as Supremes, as Marvelletes e Martha and The Vandellas. Foi delas, também, que Amy tirou o penteado que desafia a lei da gravidade e que se tornou sua própria marca. Os girl groups também ensinaram a Amy algo valioso sobre a produção de canções confessionais. “Percebi que as Shangri-las (as únicas brancas entre as aqui mencionadas) têm uma canção para cada estágio de um relacionamento”, contou uma vez, citada por seu biógrafo Newkey-Burden. “Quando a gente vê um rapaz e nem sequer sabe o nome dele, quando a gente começa a conversar com ele, quando começa a sair com ele, quando a gente se apaixona por ele, quando ele rompe com a gente – e aí a gente quer se matar.” Back to Black é exatamente sobre isso. Vendeu mais de 12 milhões de cópias pelo mundo e ganhou cinco prêmios Grammy.

“Seu sonho na vida / É ser a mulher de um jogador de futebol / Você é mais do que uma fã / Procurando por um homem / Mas você termina à noite com o que estiver à mão”

Trecho de “Fuck Me Pumps”, de Amy Winehouse. Tradução de Arthur Dapieve
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(JACQUELINE DI MILIA /CORBIS OUTLINE/LATINSTOCK/acervo rede Abril)

Cronista e tema da cultura pop

Em suas músicas, Amy satiriza temas do mundo das celebridades, como as maria-chuteiras britânicas (como em “Fuck Me Pumps”). Da mesma forma, Amy é tema para artistas de diversas áreas, como o italiano Marco Perego, que na obra “O Melhor Rockstar É o Rockstar Morto” encena o assassinato fictíco da cantora.

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Se alguém tivesse dito que Back to Black era o relançamento em CD de um LP obscuro da Stax – a gravadora de soul de Memphis, famosa pela integração racial e pelo ataque violento dos instrumentos de sopros –, muita gente teria acreditado.

Para fornecer os metais em brasa, Amy e o produtor Mark Ronson contrataram os Dap-Kings, que acompanham a cantora negra norte-americana Sharon Jones — que nos anos 1990, já veterana, foi uma das precursoras da retomada da soul music dos anos 1970. Foram eles que deram a Back to Black o delicioso sabor vintage. Sharon não ficou muito satisfeita com a “tomada de empréstimo” do seu som, mas se beneficiou da quase clonagem. Apesar de já ter gravado dois bons discos, foi só a partir do terceiro, 100 Days, 100 Nights, de 2007, que atingiu um público mais amplo. O efeito Amy Winehouse.

Quatro anos sem gravar

A diferença entre Sharon e Amy – ou entre a cantora inglesa e a maior parte dos artistas norte-americanos de soul dos anos 1960 – estava sobretudo nas letras. Embora, já se disse, versos confessionais sempre tenham sido comuns no ramo, Amy os levou a um estágio acima. Ou, talvez seja mais apropriado dizer, abaixo. Uma sarjeta de amargura.

O principal assunto de Back to Black era a própria capacidade de beber e de se estrepar. “Nunca é seguro para nós/ Nem de noite, porque eu bebi”, avisava Just Friends. “Eu trapaceei comigo mesma/ Como eu sabia que faria/ Eu te disse que sou encrenca/ Você sabe que eu não sou boa coisa”, constatava You Know I’m No Good. “Eles tentaram me mandar para a desintoxicação/ Mas eu disse ‘não, não, não’”, rebelava-se em Rehab.

“Eu nunca mais quero beber/ Eu só, oh,
eu só preciso de um amigo/ Não vou
gastar dez semanas/ Todo mundo
pensando que estou no estaleiro”

Trecho de “Rehab” de Amy Winehouse. Tradução de Arthur Dapieve
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A desfaçatez com que transformava sua vida em arte, de uma maneira muito mais verossímil do que Madonna, por exemplo, inspirou mocinhas britânicas a seguirem seu caminho. Casos de Lily Allen e Kate Nash. Todavia, enquanto essas duas não deixam de ser adolescentes bem espertas na arte de detonar os meninos, Amy sempre soou muito madura, curtida nas drogas e no desamor.

Obviamente, a infeliz diva do jazz Billie Holiday é outra referência possível. Em Rehab, grande sucesso de Back to Black, Amy também dizia que preferia “ficar em casa com Ray” (Charles), aprendendo coisas com “Mr. (Donny) Hathaway”, outro grande soulman.

Ainda que tivesse pendurado as chuteiras e as canecas de cerveja depois do segundo CD, Amy já teria escrito mais um capítulo da longa história do fascínio da música popular britânica pelo que há de mais visceral na música negra norte-americana. Fazem parte dessa saga tanto os Beatles e os Stones como Eric Clapton e Stevie Winwood, mas no caso de Amy existem antecedentes mais específicos.

O principal é afinada Dusty Springfield, capaz de (quase) encarar Aretha Franklin e que gravou nos Estados Unidos um LP incendiário, Dusty in Memphis, de 1969. Além disso, um mês e meio antes de Amy lançar Frank, Joss Stone, então com 16 anos, havia posto nas ruas o ótimo The Soul Sessions, acompanhada por músicos norte-americanos. Depois, a história do fascínio transatlântico prosseguiria com a galesa Duffy, de voz cortante.

É impossível dizer em que ponto da carreira estaria Amy Winehouse se sua vida profissional não tivesse empacado por causa da vida pessoal. Um dos maiores fracassos nessa área foi o casamento com Blake Fielder-Civil, esse sim um obcecado com as manchetes de jornal – chegou a aparecer em fotos com um sósia trans de Amy.

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Além da união malograda, as prisões por agressão e posse de drogas, as fotos comprometedoras, os distúrbios alimentares, o enfisema pulmonar, as hospitalizações, os shows interrompidos, tantos eventos tristes que fazem sua biografia parecer um prontuário médico-legal, roubaram-lhe quantidades imensuráveis de energia. Energia que, de outra forma, poderia estar direcionada para a atividade de cantora e compositora, na qual ela já mostrou ser nada menos que genial. Sim, genial. É impressionante que Amy Winehouse goze desse status graças a apenas dois discos (logo relançados com CDs-bônus para tentar encurtar o hiato criativo) e um DVD (I Told You I Was Trouble – Amy Winehouse Live in London) oficiais.

Os escândalos não ajudaram a sua carreira. Ela mesma dissera que pretendia gravar quatro ou cinco discos antes de tirar uma folga de dez anos para ter filhos. Tirou uma de ao menos quatro anos, depois de dois discos, sem filhos. Essa mulher, que já se definiu como “compulsiva, motivada, calma, maternal, alcoólatra” segue transformando sua infelicidade em alento para os fãs por meio de seu legado na música.

“Filha, pare de beber”

É certo que existiam músicos com baixa auto- estima e tendência a se punir pelo próprio sucesso desde muito antes de 1953, quando Elvis Presley entrou numa loja em Memphis e pagou 4 dólares para gravar duas canções e dá-las de presente à mãe.

Apesar de ter sobrevivido aos fatídicos 27 anos, Presley também morreu jovem, aos 42, entupido de drogas e remédios. Àquela altura, outros já tinham feito o que podiam para abreviar a convivência consigo mesmos, como o astro country Hank Williams, morto por overdose de morfi na aos 29 anos, e o galã do jazz Chet Baker, que só se suicidou para valer aos 58 anos, mas apodreceu em vida. Nela e no vício em heroína.

No entanto, foi o rock que se apoderou da mitologia dos mortos jovens, mesmo que a maioria de seus astros tenha sobrevivido para pegar os netos no colo. É célebre o verso-declaração de Pete Townshend, do Who, na música My Generation: “Espero morrer antes de ficar velho”. Na época da composição, 1965, o guitarrista tinha 20 anos (hoje tem  79). De alguma forma, o rock acreditou que morreria jovem, e alguns de seus expoentes se encarregaram da profecia autorrealizável. A rigor, Amy Winehouse nunca foi uma roqueira. Suas fontes de inspiração foram o jazz, o hip-hop e o soul. Só que ninguém nasceu no Ocidente pós-Elvis sem incorporar parte do espírito do rock.

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Amy Jade Winehouse nasceu a 14 de setembro de 1983, em Southgate, no norte da Grande Londres. Caçula de uma família judaica não religiosa, seu pai foi motorista de táxi, e sua mãe, farmacêutica. Em 2010, eles fizeram um apelo pela TV para que a filha parasse de beber (supostamente, ela largou todas as outras drogas), alegando que Amy não estava apenas se matando, mas matando os dois também. A sua infância não foi traumática. O clichê “cantava desde garota” é preciso: aos 9 anos, estava na escola de teatro para treinar a voz; aos 13, ganhou a guitarra na qual começou a compor; e, aos 1920, em 2003, lançou seu primeiro CD, Frank, pelo prestigioso selo Island.

Frank, naturalmente, era o Sinatra, de quem seu pai era fã. O norte-americano era mencionado em Take the Box (“O sutiã Moschino que você me comprou no Natal passado/ Ponha na caixa/ Frank está aqui e eu não ligo”) e constava da lista de agradecimentos, junto a Ray Charles, Duke Ellington e Sarah Vaughan. Os rappers dos Beastie Boys também estavam lá. Na adolescência, Amy cantara tanto numa banda de jazz como num grupo de rap. “Eu gostava de hip-hop progressivo, como Mos Def, e coisas conscientes, como Nas”, disse Amy a Chas Newkey-Burden, autor do livro Amy Winehouse – Biografia. “Havia jazz, mas o hip-hop também circulava dentro de mim.”

*ARTHUR DAPIEVE é jornalista e escritor, autor do romance Black Music. Esta matéria foi originalmente publicada em 2011, na capa da edição 161 da Revista Bravo!, e foi adaptada e atualizada em 2024 para uma homenagem póstuma à Amy

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Revista Bravo! 161 de janeiro de 2011 (Acervo Bravo!/acervo rede Abril)
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