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A revolução por Silvia Federici

Autora italiana veio ao Brasil lançar seu novo livro, "Além da Pele", e conversou conosco sobre movimentos sociais, feminismo e política italiana

Por Maria Carolina Casati
Atualizado em 24 jan 2024, 12h24 - Publicado em 23 jan 2024, 11h19

No dia 25 de novembro de 2023, não teve chuva, vento, apagão, frio ou outra intempérie que fizesse com que as pessoas arredassem o pé da tenda da Flipei, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. Paralela à Flip, a programação daquela noite recebia a italiana Silvia Federici em Paraty.

Professora, militante e feminista de formação antifascista, Silvia Federici é consagrada não somente por obras como Calibã e a Bruxa, O Ponto Zero da Revolução e o recente Além da Pele, todas publicadas aqui no Brasil pela Elefante, mas também por trabalhos sociais importantes nos EUA e em países africanos, como a Nigéria.

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Silvia Federici na Flipei, novembro passado durante a edição de 2023 da festa literária de Paraty (Sara de Santis/divulgação)

Silvia Federici talvez seja uma das vozes mais contemporâneas da luta política de classes, nascida na fase final da Segunda Guerra em uma Itália destroçada pelo totalitarismo e hoje com mais de 80 anos de idade, ela tem como objeto de estudo a exploração do trabalho. Federici ao mesmo tempo endossa e critica o marxismo por suas posturas machistas, cujas teorias tiram da equação a exploração do corpo, do trabalho e do trabalho do corpo feminino.

Em Além da Pele, ela reúne artigos que falam sobre a proibição da prostituição e da criminalização do aborto como formas duradouras de opressão ao corpo feminino, mas também sobre medicina, manipulação genética, tecnologias reprodutivas e muito mais.

Terminada a Festa Literária, Silvia Federici esteve em São Paulo para uma série de encontros e atividades. Em conversa exclusiva, ela falou sobre Além da Pele, movimentos sociais, feminismo e política italiana.

Ok, vamos começar. Antes de mais nada, eu gostaria de agradecer a senhora por essa conversa.
Por favor, me chame de você.

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Tudo bem, vou tentar. Eu tenho apenas seis perguntas. A primeira está baseada na frase “Corpos também são textos sobre os quais regimes de poder escreveram suas prescrições” [Além da pele, p. 76]. Que prescrições estão inscritas no corpo das mulheres hoje?
Não existe uma regra universal, porque existem corpos diferentes. Por exemplo, vemos nos Estados Unidos e ainda em outros países uma obrigação à maternidade apesar das mil lutas que as mulheres têm feito.

Em muitos desses mesmos Estados, as mulheres são proibidas de fazer abortos com legislações atrozes, mesmo em condições em que têm, digamos, enfermidades, o feto está em perigo; não lhe permitem absolutamente. Ao mesmo tempo, outros corpos, especialmente os corpos de mulheres racializadas, imigrantes, estão constantemente expostos ao perigo da esterilização. Existe toda uma história de esterilização que tem sido usada especialmente contra mulheres racializadas, mulheres negras também, para discipliná-las, porque eram particularmente combativas, rebelaram-se contra as condições de subordinação. A esterilização foi uma arma.

“Quando falamos de disciplinar as mulheres, disciplinar os corpos, temos que observar que nessa sociedade não existe apenas uma regra, mas, de fato, várias formas de disciplina dentro de uma perspectiva geral de um Estado que quer decidir sobre os corpos das mulheres, querem disciplinar as mulheres”

Em níveis mais gerais, internacionais, há uma enorme campanha que, no meu ponto de vista é uma resposta às lutas anticoloniais; é uma resposta ao crescimento, em várias partes do mundo, de uma nova geração de africanos e asiáticos que tentam se rebelar contra as condições de colonialidade que lhes foram impostas. E, nesse contexto, descobriu-se que há muita gente no mundo, certo? Portanto, acerca dos corpos dos colonizados, dos jovens das novas gerações que lutam para pôr fim a esse colonialismo que sempre ganha novas formas, há uma campanha para impedi-los de se reproduzir. Então, vimos os safaris de esterilização, vimos a imposição de formas de contracepção que as mulheres podem controlar.

Quando falamos de disciplinar as mulheres, disciplinar os corpos, temos que observar que nessa sociedade não existe apenas uma regra, mas, de fato, várias formas de disciplina dentro de uma perspectiva geral de um Estado que quer decidir sobre os corpos das mulheres, querem disciplinar as mulheres; ao mesmo tempo, existem diferentes disciplinas, algumas são forçadas a dar à luz, a outras, isso é negado. Isso é muito importante. E depois, naturalmente, mil outras imposições, por exemplo o controle da sexualidade, a criminalização do trabalho sexual, mesmo que em condições em que o trabalho sexual para muitas mulheres seja uma possibilidade de sobrevivência, a imposição da beleza, o fato de você ter que ser bonita, essa tortura à qual às mulheres são submetidas, as dietas, não é?

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E eles te culpam se você não tem um aspecto agradável… Hoje, nos culpam se envelhecemos, ficam nos dizendo que, se usarmos os produtos certos, não envelheceremos. É todo um conjunto de regras no qual, não por coincidência, o feminismo se definiu, pelo menos na primeira fase, como a política do corpo, uma política cujo objetivo era reapropriar-se desse corpo, acabar com o controle do Estado sob o corpo das mulheres.

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(Editora Elefante/divulgação)

Perfeito. A minha segunda pergunta é sobre a edição de 3 de maio de 2023 da revista Panorama, pois sabemos que a Itália é ainda um país muito racista.
Sempre foi e continua sendo.

E misógino.
E misógino, misógino e racista, cada vez mais.

Cada vez mais. Os corpos dos imigrantes são frequentemente representados desta forma [como na capa da revista]. Eu gostaria de te ouvir sobre essa situação, sobre essa Itália atual, que é tão racista e misógina…. Como é possível publicar uma revista como essa? Somente nessa Itália…
É incrível, não é? Agora, falemos, então, da revista Panorama, que saiu com uma capa horrenda, uma capa extremamente racista, na qual se vê mulheres com hijab e rostos de africanos e se diz: “Uma Itália sem italianos”! A pobre Itália que está submersa nos africanos…

Primeiramente, é uma coisa atroz, porque não querem ver que a imigração tem raízes muito mais profundas na política europeia do que em África, e que a Itália participa dessa política desde a época da colonização com o fascismo até o presente.

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“Nos últimos 10 anos, estima-se que cerca de 30 mil africanos, pessoas do Oriente Médio tenham morrido afogados no Mediterrâneo. Somente em 2023 o número é de mais de 2.500 pessoas afogadas. Ou seja, gerações inteiras de jovens que não saberão nada de suas famílias”

E não se fala nunca do colonialismo italiano.
Sim! E nunca falamos do colonialismo italiano, sim. Porque, como a Itália perdeu suas colônias ao final da guerra, nunca teve que enfrentar uma luta em seu próprio território, como aconteceu com a França ou a Inglaterra. Dessa forma, os italianos sempre dizem que eles não são racistas. São tão racistas que nem se dão conta que coisa é o racismo!

E não, essa política que tem uma longa história, que começa com o colonialismo e faz parte das invasões italianas na Etiópia, na Somália e continua nessas últimas décadas quando, como dando seguimento às políticas do Fundo Monetário Internacional, a crise da dívida, o uso da dívida como parte de uma política de recolonização, se iniciou um fluxo migratório também em direção à Itália. O que significa que hoje os trabalhos mais mal pagos, menos seguros e mais difíceis são feitos por africanos e em condições que, mesmo no Sul, onde há uma realidade mafiosa e violenta, eles vivem em condições realmente escravizantes.

E, todavia, como essa imigração continua, como as condições obrigam muitos jovens a migrar para ter futuro, essas condições continuam, com efeito, se agravando. A necessidade de migrar é cada vez mais forte, começam os gritos sobre o perigo, a Itália submersa, a Itália que não é mais aquela de antes, o fim da civilização ocidental…

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(Sara de Santis/divulgação)

Lembremo-nos também dos decretos de Salvini.
Sim, os decretos do Salvini, toda essa nova fascistização não apenas do governo, sem dúvida, do governo com todas essas leis, mas fascistização também de uma cultura; o governo cria uma cultura à qual muitos depois se associam. Eu creio que é tarefa de todos os movimentos sociais colocarem essa questão no centro [das discussões]. Porque esse novo racismo, essa nova visão colonial do mundo, isso é realmente atroz.

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Pensemos, por exemplo e estes são números oficiais, nos últimos 10 anos, estima-se que cerca de 30 mil africanos, pessoas do Oriente Médio tenham morrido afogados no Mediterrâneo. Somente em 2023 o número é de mais de 2.500 pessoas afogadas. Ou seja, gerações inteiras de jovens que não saberão nada de suas famílias, que não deveriam se afogar, porém, as condições pelas quais a Itália respondeu a esses barcos, inclusive com leis que proibiam a ajuda às embarcações, que penalizavam aqueles que tentavam ajudar quem vinha nos barcos através do Mediterrâneo [possibilitou isso]. Assim a culpa, a culpa dessas mortes, a culpa pelo fato de o Mediterrâneo ter se transformado num…

Cemitério.
Cemitério, precisamente, dos governos europeus, do governo italiano. Então, essas imagens chocantes, essas imagens tão chocantes [da revista], próprias de um racismo à la Mussolini, infelizmente, essa política não apenas da Itália, mas é uma política que vem, cada vez mais, adotada por toda a comunidade europeia. Vimos imagens, por exemplo, na Grécia. 700 mortos…

“É uma situação realmente dramática que nos faz dizer que a Palestina é o mundo.”

Na Itália, eu estive lá em outubro de 2023, havia continuamente reuniões da comunidade europeia para pressionar a Líbia e a Tunísia, para que se empenhassem mais impedir que os africanos migrassem, mesmo sabendo que, na Líbia, muitas vezes, quando esses africanos são presos, são usados em trabalho escravo ou então levados para o deserto e abandonados para morrer.

É uma situação realmente dramática que nos faz dizer que a Palestina é o mundo. Que estamos entrando em uma nova era, na qual vemos, em primeiro lugar, as consequências macroscópicas da recolonização do chamado Terceiro Mundo, as consequências do ajustamento estrutural da política agrícola do Banco Mundial, que trouxeram o empobrecimento e a expulsão de pessoas das suas terras.

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Nós vemos as consequências, antes de mais nada, de as pessoas serem obrigadas a deixar os próprios países, as próprias terras, para garantir um futuro para si e para suas famílias. E vemos que a resposta não é mudar as políticas para que as pessoas possam ficar e viver em seus próprios países, mas, ao contrário, criminalizá-las, criminalizar as vítimas. Criminalizar milhões de pessoas que já foram vitimadas por expropriações, por política de dívida, por toda uma política racista, colonizadora, imperialista. E assim, para concluir, é fundamental, sobretudo aos movimentos feministas, que emerjam contra essas imagens verdadeiramente vergonhosas.

Isso mesmo, em 2012, eu estava em Palermo e ouvi a prefeita de Lampedusa à época, ela dizia: “isso é uma crise, não sei o que posso fazer porque Lampedusa é muito pequena”… Em 2012!
Sim, quando estive na Itália, em outubro, essa era uma imagem contínua, contínua, contínua desses que chegam, essas ondas, “estamos imersos nesses selvagens que chegam”.

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(Editora Elefante/divulgação)

A minha terceira pergunta é: pensando um pouco nessa situação dos corpos diversos, por exemplo, os corpos das mulheres na América Latina racializadas. A exploração dos corpos racializados na América Latina ainda é um problema muito sério.
Sim, também na América do Norte…

Exato! Esses corpos racializados, como diz Françoise Vergès, são de pessoas que “abrem e limpam as cidades” e, justamente por isso, são consideradas descartáveis. No Brasil, aliás, a primeira vítima da COVID-19 foi uma empregada doméstica, seus patrões foram para a Itália e ao retornarem e exigirem que ela continuasse trabalhando mesmo na quarentena, a infectaram e ela morreu. Obviamente, ela era uma mulher negra. Eu gostaria de ouvir sua opinião sobre essas formas modernas de exploração desses corpos.
Exato, as trabalhadoras domésticas, não? Com a covid houve um momento de grande crise para elas, já vivem em condições terríveis, longe de casa, não têm um contrato regular, podem ser chamadas a qualquer hora à noite, de dia. Com a covid, em parte, muitas foram demitidas devido ao medo do contágio, outras, porém, em vias de serem.

E, depois, a coisa mais difícil foi a experiência dos enfermeiros. Se pensarmos, por exemplo, nos Estados Unidos, mas também no Brasil, 70% dos enfermeiros vêm de países como as Filipinas, como a América Latina, são mulheres racializadas, são mulheres que foram forçadas a trabalhar em um ritmo inviável. E um sofrimento enorme, porque não é somente o trabalho árduo que te consome, mas ver todos os dias, confrontar-se todos os dias com pessoas que morrem, pessoas que morrem sozinhas, longe das suas famílias. E o medo de trazer para casa o contágio.

Assim, não por acaso, hoje, nos Estados Unidos, por exemplo, muitos enfermeiros estão deixando seus empregos, houve greves porque, de fato, a realidade é muito clara, não é? O caráter estruturalmente racista e estruturalmente generificado, organização generificada do trabalho pode ser vista a olho nu em todo o mundo, em todas as cidades. Porque é possível observar que quem faz os trabalhos mais precários, mais perigosos, mais mal pagos, mais nocivos para a saúde do corpo são pessoas que vêm de países que estão sujeitos ao imperialismo europeu, ao imperialismo americano, [pessoas] racializadas e condenadas a uma vida degradada.

“Essas desigualdades são realmente uma arma muito forte do capitalismo, do Estado capitalista, para continuar seu poder e, é por isso que o coletivo deve realmente ser uma condição central de qualquer movimento que queira mudar os rumos [da sociedade].”

Acredito que derrubar, subverter essa hierarquia de gênero, subverter essas desigualdades sociais é a única condição, a primeira condição para qualquer movimento. Não podemos mudar o mundo se não subvertermos esta política, que é uma política de produção contínua de desigualdades, produção contínua de racismo, produção contínua de conflitos; porque não somente se produzem desigualdades, mas se dá a certos setores do proletariado, aos brancos, aos setores brancos, aos trabalhadores assalariados, se delega o controle sobre a quem tem menos poder, sobre os negros, aos homens se dá o controle sobre as mulheres.

É uma situação que permite que o Estado e o capital se reproduzam, se fortaleçam continuamente, apesar de desenvolver uma política que, na realidade, cria muita miséria para todos; apenas que essa diferenciação de uma vida um pouco melhor faz com que [algumas pessoas] sintam-se superiores, têm a impressão de que: “bom, de qualquer maneira, eu estou melhor”. Dá poder recuperar a sensação de poder às custas dos outros. O desprezo às pessoas de cor, os homens que são autorizados a serem violentos com as mulheres. Então, essas desigualdades são realmente uma arma muito forte do capitalismo, do Estado capitalista, para continuar seu poder e, é por isso que o coletivo deve realmente ser uma condição central de qualquer movimento que queira mudar os rumos [da sociedade]. Não podemos mudar o mundo, não podemos transformar, não podemos dar fim a qualquer forma de exploração se não subvertermos esse mecanismo que continuamente nos divide, esse mecanismo que continuamente destrói nossa possibilidade de luta.

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(Editora Elefante/divulgação)

Perfeito. Em Além da Pele, você fala muito dessa questão racial. Logo no início são mencionadas as estratégias das mulheres escravizadas para escapar do estupro e da gravidez [indesejada]. Lembrei de Amada, livro de Toni Morrison.
Ah, sim, sim! Ah…

Sempre que eu falo Toni Morrison as pessoas reagem assim, porque ela é perfeita, eu sei. É a minha escritora preferida.
Sim, sim, sim!

O texto de Amada é inspirado na história real de uma escrava que foi capturada após fugir com seus filhos, ela matou uma e disse que preferia vê-los todos mortos a serem escravizados.
Sim, sim, sim sim, escravizados…
Essa mulher criou uma questão importante, mesmo durante o processo que sofreu, pois, se tivesse sido acusada de assassinato, a filha deveria ser considerada um ser humano e a pena seria maior. Mas, nesse caso, ela deveria ser considerada humana, uma pessoa, mas se considerassem que a mãe foi uma que violou a propriedade privada, o tempo na cadeia seria menor. Como você vê essa situação?
Às mulheres, principalmente após o início do século XIX, por volta de 1804, quando na Inglaterra, por exemplo, o tráfico dos escravizados começa a se encerrar e, portanto, há menos possibilidade de obtenção de escravizados para as plantações americanas, cria-se uma verdadeira indústria para a produção de escravos. As mulheres já escravizadas eram submetidas a contínuos estupros por seus senhores brancos. Mas isso é feito sistematicamente.

E não para produção de pessoas, para a produção de escravos.
Sim, escravos. Produção de escravos que não são seres humanos. E essa é uma das lutas, tantas lutas que as mulheres realizaram. As mulheres africanas fizeram de tudo para abortar e não gerar filhos que depois pudessem ser vendidos em leilões. E, uma vez que essas crianças existiam, faziam de tudo para continuar sendo mães. Há esses contos incríveis de, correndo grande perigo à noite, essas mulheres que trabalhavam o dia todo, iam de uma plantação a outra para ter essas crianças nos braços por uma hora, para ver essas crianças por uma hora.

Frederick Douglas fala sobre sua mãe, mesmo que ele não se dê conta, mesmo que ele não entenda muito bem quais riscos essa mulher deve ter corrido. Ele dizia que conheceu muito pouco a mãe, mas essa mãe deve tê-lo amado muito porque corria riscos [para estar com ele]. Por outro lado, as mulheres africanas também tentaram tudo o que podiam usando remédios e ervas que conheciam da África, elas tinham muito conhecimento de ervas para poder abortar, não? Então, essa maternidade negada, essa maternidade sofrida tão profundamente pelas mulheres negras, continuou na história, não aconteceu somente o período da escravidão, mas continuou depois, porque a dificuldade de ser mãe é algo que continua até hoje.

“A gravidez, um fato de celebração, dar a nova vida, se transforma para milhões de mulheres em um momento de medo, de risco que depois continua para o resto da vida. E por quê? Porque o risco, o medo é que os filhos sejam assassinados, presos, penalizados no trabalho e em muitas outras condições.”

Gostaria, portanto, de falar de algo sobre o qual pouco se sabe, essas novas torturas. São leis que foram aprovadas nos últimos anos nos Estados Unidos para proteger o feto, leis de proteção que conferem ao feto personalidade legal, uma pessoa com pleos direitos. Então, quando essas mulheres engravidam, tudo se torna perigoso para elas porque qualquer acidente com o feto, converte-se na possibilidade de ela ser acusada de ser uma homicida. E isso é uma coisa muito, muito, muito grave. É uma coisa muito séria e que afeta acima de tudo mulheres de cor, porque são elas que vão com mais facilidade para os hospitais públicos. Mas se você vai a uma clínica particular, é diferente. É uma dificuldade ser mãe nestas condições.

Com esse medo…
Sim, com esse medo contínuo, seja durante a gravidez, seja durante o parto. Porque muitas mulheres racializadas, atualmente, por exemplo, não querem ir ao hospital para dar à luz sozinhas, e criou-se uma prática que é uma nova figura social, a figura da doula. Muitas mulheres querem ir para o hospital com a doula porque acontece muitas vezes de, quando você chega ao hospital, não te escutam…

Sim, aqui também há muitos casos de violência obstetrícia.
Sim, o parto se transforma em um momento de medo, um momento de violência, outro momento de expropriação, no qual a sua agência não existe mais. E não é só isso, essas leis. Mas redes de vigilância estão sendo criadas em vários estados dos Estados Unidos nas quais hospitais, médicos, enfermeiros e estruturas hospitalares devem, são obrigados a contatar a polícia quando os exames que eles fazem em mulheres que têm que dar à luz são exames que indicam alguma anormalidade. Dessa forma, há um controle; e tudo isso, claramente, nas clínicas públicas, nos hospitais públicos, enquanto quem tem acesso à clínica privada, ao médico pode, dar à luz em casa, etc, etc, é uma história muito diferente.

Porém, a maioria não tem meios para ter acesso ao setor privado e deve ir ao público, no qual existe um sistema policiesco de controle pelo qual cassam a licença de médicos ou enfermeiros, se eles não denunciam. Dessa forma, a gravidez, um fato de celebração, dar a nova vida, se transforma para milhões de mulheres em um momento de medo, de risco que depois continua para o resto da vida. E por quê? Porque o risco, o medo é que os filhos sejam assassinados, presos, penalizados no trabalho e em muitas outras condições.

É, de fato, um projeto dessas pessoas.
Sim, sim! Ou novas formas de encarceramento. Porque eles querem usá-los…

Exato! Eu só tenho mais duas perguntas. O seu livro mais famoso, Calibã e a Bruxa, fala de como a caça às bruxas mudou a história da humanidade e foi parte fundamental para a consolidação do capitalismo. Suas considerações são realmente poderosas, porém, ao mesmo tempo, inquietantes. Eu adoraria ouvir você falar um pouco sobre essa bruxa real chamada Tituba, objeto do meu estudo, que representa toda essa questão de raça, classe e imigração. Eu gostaria de ouvir você falar um pouco sobre essa situação de caça às bruxas, mas definitivamente sobre a Tituba, como você vê essa questão.
A caça às bruxas que ocorreu em Salem é muito, é muito…

Diversa!
Sim! Porque é uma caça às bruxas na qual o elemento colonial é muito direto, não? Em primeiro lugar, a pessoa que é imediatamente identificada como uma bruxa, é uma mulher do Caribe, uma mulher negra: clássico! Devemos fazer uma conexão, por exemplo, com o fato que muitíssimos dos acusados de bruxaria e magia negra no chamado Novo Mundo eram africanos; principalmente as mulheres tidas como perigosas nas plantações porque eram vistas como personagens que incitavam a revolta, como personagens subversivos que, de certa forma, na sua prática e no seu corpo, nas decisões e determinações de continuar a cultura, a cultura africana, os ritos espirituais, a música, para continuar a cultura africana mesmo durante a escravidão, porque é o papel da mulher que permite essa continuidade, essa reprodução do mundo da cultura africana nos lugares de escravização.

São elas que representam a continuidade e a possibilidade de sobreviver. Então, perseguir as mulheres que representavam elementos de continuidade, que representavam uma cultura que continuava a dar vida mesmo em um momento tão devastador como a escravização, era importante; portanto, a mulher negra é a bruxa que tem poderes malignos, que é perigosa.

Outro aspecto que se relaciona à caça em Salem e, também, à história de Tituba, é o lugar no qual a caça se dá. Pois, é uma terra onde os colonizadores dizem ser uma terra de demônios, é uma terra de indígenas. Esses colonos chegam e desapropriam e se instalam em terras que são povoadas por povos indígenas. Havia essa figura que foi central para a caça às bruxas de Salem que dizia: “Se nós sofremos com toda essa bruxaria, é porque estamos em uma região povoada por demônios vermelhos, povoada de demônios.” A ideia era essa.

E a política europeia dos colonizadores na América Latina foi uma política que não somente escravizou, mas denunciou todas as culturas autóctones, as culturas importadas daqueles que eram escravizados, eram consideradas diabólicas. Depois, surge uma série de representações visuais. Os indígenas e os africanos são demônios, as expressões de sua espiritualidade são diabólicas, indicam uma vontade diabólica. O conceito de negro como representante de algo sombrio, perigoso, maligno, tudo isso que está no personagem de Tituba.

Sim, aqui no Brasil há essa percepção com as religiões afro-brasileiras.
Sim, o candomblé.

Sim, candomblé, umbanda…
Sim, de fato, todas essas religiões que vêm da Nigéria são consideradas produtos de uma região de selvagens, selvagens e malignos, com uma tendência a produzir o mal, a subverter tudo o que é uma ordem moral.

Exato! Essa é a minha última pergunta. Neste livro, Além da pele, você fala sobre a crise climática e crise ecológica e sobre não “amar mais” a palavra empoderamento.
Sim, afe!

Como proceder para mudar toda a situação, uma vez que o capitalismo não dá sinais de acabar tão cedo? Como podemos empoderar povos e mulheres sem usar esse termo?
Eu não gosto da palavra “empoderamento” por causa da forma como foi usada e foi introduzida na linguagem feminista neoliberal… Nos Estados Unidos sempre significava empoderar-se incorporando uma cultura e uma prática capitalista com essa ideia da mulher proprietária do próprio corpo. Isto é, o neoliberalismo em todas as suas formas tenta apagar a ideia de que há exploração, bem como a ideia de que existe trabalho. Tenta realmente apagar a imagem do trabalho e dos trabalhadores. Ou seja, não somos trabalhadores. Somos possuidores, proprietários de uma capacidade…

Empreendedores!
Empreendedores que desenvolvem as nossas competências e, depois, como proprietários dessas competências, vendemo-las no mercado; somos todos donos, não há mais exploração, já não podemos mais queixar-nos porque vendemos nossas habilidades. Não somos explorados. Assim, essa ideia de empoderamento que está muito vinculada a essa ótica perversa é uma coisa pela qual eu sinto um grande desgosto.

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(Sara de Santis/divulgação)

E essa situação se relaciona à crise climática, sofremos as consequências na Flip, quando, devido às fortes chuvas houve um apagão.
É toda uma continuidade. Existe uma enorme continuidade hoje que apresenta muitas facetas diversas. Pois, vemos que a crise climática é também uma crise humana de escassez de recursos, de destruição de recursos. É uma crise que obriga à imigração, à expulsão da terra por falta de água, as lavouras são cada vez mais escassas. A terra, como dizia Marx, está tão exausta quanto os homens. O capitalismo consome a terra como consome pessoas, explora a terra privando-a de suas energias vitais, de modo que a terra está morrendo cada vez mais, da mesma forma que consome as energias vitais das pessoas.

Agora, no meu ponto de vista, devemos pensar, seja por movimentos que têm a capacidade de se conectar e que não agem separadamente, mas que formam um terreno comum, que formam práticas comuns, primeiro. E, por outro lado, criar formas de organização que sejam capazes de lutar e operar em vários níveis, porque temos que lutar tanto nos grandes momentos de protesto, de recusa, de oposição com todas as [nossas] forças às políticas de Estado, quanto, ao mesmo tempo, digamos, temos três direções de luta.

Perfeito!!
Três direcionamentos de luta. Um: contra as novas formas de exploração e expropriação. Dois: a recuperação do que nos foi roubado, a recuperação, a reapropriação, a reapropriação, por exemplo, de terras. E, o outro, a reconstrução. Reconstrução é o discurso do comunal, é o discurso do mudar as condições, da revolução cotidiana, de derrubar os muros que nos separam, nos unir por uma reprodução mais socializada e cooperativa, na qual colaboramos, na qual temos o sentido de um bem comum, em que superamos a fragmentação, o individualismo, a privacy. Porque todas essas coisas (individualismo, privacy) nos enfraquecem, destroem a capacidade. Falamos de empoderamento. Empoderamento significa unir-se, significa criar formas de organização de luta que são também formas de solidariedade, de relações afetivas, nas quais você conhece quem é a outra pessoa, sabe que pode depender, sabe que não está sozinha, que você divide, “comparte”, como se diz? Me falta a palavra em italiano.

Compartilha?
Reconhecimento. Isso é uma força de estar junto [unido]. Porque, creio, é uma grande fraqueza o fato de que na vida cotidiana continuamente vivemos num modo… todas as casinhas, os muros, a privacidade, pensar somente em você e na sua família. Isso é uma coisa que nos enfraquece, devemos começar do básico: as cozinhas populares, as assembleias, as hortas urbanas. São princípios muito importantes dessa capacidade. E, a memória histórica coletiva.

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(Editora Elefante/divulgação)

Você também fala da retomada da magia.
Retomada, sim. Essa é a magia, não? É ver a continuidade entre nós, nossas vidas, ver como nossos corpos dependem da natureza, como não estamos separados, ver o corpo como um campo aberto, que continuamente responde ao sol, morremos se não virmos o verde, se não virmos o azul, se não virmos o mar, não? Esses corpos que estão cada vez mais famintos, famintos não só de comida, mas de natureza, famintos de relacionamentos com os outros, relações reais.

Ainda que tenhamos medo dos outros, não? Nos abarrotam de medo com todos esses filmes nos quais os outros são monstros. Todos esses filmes com o monstro. Eles estão nos aterrorizando com a ideia de [que devemos] ser sempre muito prudentes, “não se abra!”. Tudo isso são táticas para enfraquecer as pessoas, táticas de divisão, táticas de enfraquecimento. Então, temos que lutar contra isso. É aquilo que chamamos de “política dos comuns”. Do bem comum, ver que a nossa vida, nossos corpos não terminam nos limites da pele. Além das fronteiras da pele, nós organizamos nossa vida em comum.

Perfeito!
É assim!

Grazie mille!
De nada!

Foi uma honra!
Não, obrigada, você!

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