‘O amor e sua fome’: livro de Lorena Portela narra abandono e busca pelo afeto
2º romance da autora traz relações complexas em uma narrativa permeada por poesia
Dora tem um buraco no peito e busca o tempo todo uma relação para nutrir-se. Quando era pequena, a mãe foi embora e o pai é tão calado que se confunde com um móvel da casa. É na prima de segundo grau, Esmê, que ela encontra uma amiga, uma família e uma companheira. No enredo do livro “O amor e sua fome” (Todavia), de Lorena Portela, acompanhamos o amadurecimento desses e de outros personagens que vivem na cidade de Miradouro.
A narrativa, em primeira pessoa, mostra o olhar e a formação de uma protagonista que sofre com o abandono – apesar de não se deixar definir somente por isso. “Mais do que qualquer coisa, eu não queria que a Dora fosse coitada. Sei que é uma personagem bem dodói, mas não queria colocá-la nesse lugar”, diz a autora em conversa com a Bravo!. “É por isso que eu trouxe muito a ironia. Ela é super invejosa, amargurada.”
Outra personagem que chama atenção é Joana, uma mulher trans que personifica tudo o que Dora quer ser: filha amada, cheia de oportunidades e preciosa. Em nenhum momento isso é tratado como tabu, bem como a paixão entre Dora, Esmê e Jaime. É essa leveza que permite que o leitor sinta a empatia crescer a cada capítulo. “A literatura é, também, sobre o que a gente sonha. No primeiro livro, a protagonista está se descobrindo bissexual e não está atravessando um purgatório”, explica. “No segundo, há situações que devem ter gerado muito ruído porque eles vivem no interior do Ceará. Mas eu não tinha interesse em trazê-los. O que quis mostrar foi o que eles viveram”, emenda ela.
Ao todo, foram quatro anos desde o primeiro lançamento da jornalista, “Primeiro eu tive que morrer”, para esse. Isso porque ela participou de duas oficinas de escrita para aperfeiçoar a ideia inicial. Quem ler os dois títulos vai perceber que a redação está diferente: há mais descrições, pausas e um aprofundamento nos sentidos humanos. “A primeira obra veio de muita inocência. Escrevi sozinha durante a pandemia e não sabia muita coisa. Fui pesquisando e decidi imprimir por conta própria. Já o segundo reflete minha transformação enquanto escritora. Sempre sonhei com esse espaço e agora tudo o que mais quero é honrar esse lugar e entregar livros cada vez mais desafiadores”, finaliza Lorena. Abaixo, confira a entrevista completa com a escritora:
Bravo!: Como surgiu a ideia do romance?
Eu tinha nuances dessa história vagando pela minha cabeça. Mas comecei, de fato, durante uma oficina de escrita da Socorro Acioli, que amo de paixão. Era uma oficina que trabalhava os cinco sentidos. Foi aí que comecei a protagonista, Dora – quando aconteceu o primeiro contato com ela. Acho que foi muito especial a história ter começado assim porque foi um processo muito minucioso. Ao todo, foram três anos para escrever essa obra: fiz a primeira oficina em 2021, em 2022 fiz outra oficina que durou um ano, dessa vez com o Juan Pablo Villa-Lobos, e, em 2023, fiquei sozinha com o livro para finalizá-lo.
Bravo!: Seus dois livros falam sobre o amor. Por que esse é um tema importante para você?
O amor nunca vem sozinho. É por isso que ele é tão rico e é por isso que a gente fala sobre ele há milênios e milênios. O amor é muito grande e é um sentimento muito puro, mas que vem acompanhado de muita coisa, como abandono, inveja, rejeição, felicidade… Quando comecei a escrever, não pensava nele como uma coluna vertebral do livro. Ele ia ser conduzido de uma forma diferente, mas a história também nos surpreende à medida que a gente vai escrevendo. Percebi que a narrativa estava fundamentada no amor que falta e no amor que tenta preencher. No meu primeiro livro, o amor apareceu de uma forma que, para mim, foi secundária no ato da criação, mas depois também tomou o protagonismo. Mesmo quando tento não escrever sobre, ele se torna o centro da história.
Bravo!: Há uma mudança na escrita entre um livro e outro. As palavras, as pausas e o jeito de escrever são diferentes. Isso foi consciente?
Sim. Busquei trazer uma narração que considero mais madura e que traz um pouco mais de camadas literárias. Isso porque eu estava demorando para fazer esse livro – o intervalo de um entre o outro foi de quatro anos. Então, queria muito escrever uma obra que justificasse essa passagem de tempo. Também foi um tempo de transformação enquanto escritora: me conectei muito mais com a narrativa, conversei com muito mais pessoas, li muitos outros livros. Acredito que é muito interessante para os leitores, pelo menos para mim enquanto leitora, perceber essa transformação de uma escritora. Acho que todo autor precisa trazer algo novo de sua jornada a cada lançamento. Entre uma obra e outra, perdi meu pai. Essa foi uma experiência que me afetou muito e não tem como a escrita ficar fora desse processo. Espero que o meu próximo livro também traga isso.
Bravo!: Dora é marcada pelo abandono na infância – da mãe que vai embora e de um pai que, mesmo presente, nunca a amou. Essa experiência define a forma que ela encara a vida?
No livro, com certeza. Dora é uma criança marcada pela ausência. O título vem daí, desse buraco que ela carrega desde muito pequenininha. Ela é uma protagonista que amadurece as vistas do leitor e que chega à vida adulta muito parecida com a criança que foi. Acho que todos nós temos muitos traços das crianças que fomos, mas na Dora isso é muito gráfico. É muito visível que ela carrega essa dor a vida toda.
Bravo!: É isso que define o final do livro? Fiquei pensando que, quando ela dá o menino, é porque ela quer ser mais filha do que mãe.
O final é o grande desfecho de quem a Dora é. Quando concluí o livro, estava absolutamente segura de que tinha terminado porque não havia mais nada para dizer sobre ela. Esse sentimento que permeia a história, de que a Dora quer ser filha, se conclui categoricamente no capítulo final.
Bravo!: Esmê é vista como mãe, melhor amiga e parceira romântica de Dora. Como foi a construção da relação entre as duas?
Na primeira ideia que tive, a relação delas ia ser um pouco mais conflituosa. Mais sombria, digamos. Mas aí começou a me fazer muito ruído porque a Dora já é muito desgraçada – não quis trazer mais uma coisa ruim para a vida dela. Até que fui construindo a Esmê como esse contraponto. A gente não conhece muito ela para além do olhar de Dora porque ela nos mostra o que vê. Eu quis trazer um amor para a vida da protagonista no qual ela poderia se apegar. E um amor que também conduz sua trajetória. Assim como o desamor conduz, o amor da Esmê conduz. Ela tem essas duas vias.
Bravo!: Uma das passagens mais marcantes acontece quando Dora está no supermercado fazendo compras para uma família que não existe. De que forma você analisa esse capítulo?
Ele foi inspirado na história que uma amiga me contou de sua infância: uma vez ela queria muito ter um cachorro e queria comprar comida para ele. Para um cachorro que não existia. Conectei muito com a Dora e com essa ideia de uma família que não existe. De um lar que não existe. Uma construção familiar que não existe. Esse acontecimento na vida da minha amiga tornou essa construção muito mais dramática. É um dos meus capítulos preferidos porque vai escalando em angústia e em dramaticidade. Na verdade, foi um dos capítulos mais difíceis de escrever. Fiquei com muita pena dessa criança carregando o carrinho. Ela vai ficando cada vez mais megalomaníaca mas, ao mesmo tempo em que isso evidencia os buracos, também evidencia a força. Dora é uma protagonista que tem as decisões tomadas por ela. Esse é um capítulo que considero central na narrativa por isso: mostra a fragilidade e também a garra que ela tem de criar a vida que quer.
Bravo!: Dora se sente só, mas procura meios de suprir essa dor. Também sente raiva, ódio, irritação… Qual é a importância de carregar a personagem com tantos sentimentos?
Mais do que qualquer coisa, não queria que a Dora fosse coitada. Sei que é uma personagem bem dodói, mas não queria colocá-la nesse lugar. É por isso que eu trouxe muito a ironia. Ela é super invejosa, amargurada. Uma coisa que mostra muito a Dora é o fascínio dela por Joana: ao mesmo tempo em que a acha fascinante, também demonstra raiva. Esse é um processo de enriquecer a personagem. De não deixá-la restrita a uma fatalidade e respeitar a história que ela estava contando.
Bravo!: Você traz temas que ainda são tabus de forma leve. Há, por exemplo, uma personagem trans e um trisal – ainda que nenhuma dessas palavras tenha sido escrita. Isso foi uma escolha consciente?
Não tenho interesse em problematizar o amor. Quero que as pessoas o vivam de formas possíveis – a literatura é sobre o que a gente sonha também. O primeiro livro, por exemplo, tem uma protagonista que está se descobrindo bissexual e não está atravessando um purgatório por conta disso. Ela tem um ou outro questionamento, mas não atravessa um calvário. Ela não vai sofrer preconceito e não vai ser excluída porque era assim que eu queria mostrar o amor que ela vive – é como ele deve ser vivido mesmo.
No segundo, quando você pensa geograficamente, eles estão inseridos em uma cidade do interior do Ceará. E no interior de qualquer cidade do Nordeste ou do Brasil, são situações que devem ter gerado muito ruído. Mas eu não tinha interesse em trazê-los. O que quis mostrar foi o que eles viveram. Joana é a personagem mais amada do livro. É uma personagem modelo. Ela gera um fascínio absoluto nas outras. Isso é mover um pouco as peças do tabuleiro e não deixar que as pessoas contem sempre as mesmas histórias de dor e sofrimento.
Bravo!: Você já está escrevendo uma nova história?
Estou com duas novas histórias. Tenho um projeto de livro de contos juvenis com a Editora Planeta – não sabemos a data do lançamento, mas estou escrevendo neste exato momento. Estou muito feliz porque lembro de ser muito impactada pela literatura na adolescência. E tenho um outro projeto de um romance adulto que comecei agora, mas também estou super animada.
Bravo!: Para você, o amor tem fome de quê?
O amor quer ser amado. Ele tem fome de amor. A gente ama e quer ser amado de volta. Acho que são poucas as pessoas que se preenchem em amar sozinho. É possível sim, amar sozinho e ficar tranquilo com isso. Não descarto essa possibilidade. Mas, geralmente, o amor quer reciprocidade, quer ser amado de volta.