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OLÁ,

Fluxo de Pensamento: A escrita na cena, por Isabel Teixeira

A atriz Isabel Teixeira compartilha sua paixão pela literatura e fala sobre sua editora, Fora de Esquadro, que ela gerencia em sua própria casa

Por Em depoimento a Humberto Maruchel
Atualizado em 17 set 2024, 11h51 - Publicado em 11 set 2024, 08h00
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 (Flora Neri/divulgação)
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Ouça a autora lendo este texto:

bet · Para Revista Bravo A Escrita na Cena

Tenho uma editora na sala da minha casa. Ela se chama Editora Fora de Esquadro e nunca estará totalmente pronta. O projeto existe desde sempre e muda constantemente. É uma editora, a princípio, sem fins lucrativos, pois não escolhi esse caminho como ofício, como sustento primordial. É simplesmente o desenvolvimento de uma semente que veio comigo, de berço. Ou talvez seja a continuidade de algo que começou junto com minha alfabetização, dentro do meu quarto de infância, aos seis ou sete anos de idade. Uma necessidade meio inexplicável, desde sempre, de escrever o que eu estava vivendo, como se, para existir de fato, eu precisasse cavar um sulco com tinta em papel sulfite, atestando que estou realmente aqui. Depois aprendi que o nome disso que eu escrevia é “diário”. Fui acumulando esses escritos ao longo da vida. Minhas estantes trazem um estudo arqueológico dos formatos desses diários. Primeiro um caderninho, desses com cadeado, repleto de frases soltas escritas a lápis, com data de 1981, 1982. Depois, folhas soltas com pensamentos e sofrimentos pré-adolescentes um pouco mais elaborados com data de 1986.

Mais tarde aderi à prática que estava na moda na minha época de colégio: agendas enormes, com descritivos detalhados de tudo que havia se passado no dia, bilhetinhos das melhores amigas, colagens dos mais diversos materiais que revelavam os eventos cotidianos: bilhetes de metrô, ingressos de teatro, cinema, papeis de bala. No final do ano a agenda mal cabia na mochila. Já no colegial, atual ensino médio, comecei a levar mais a sério o hábito compulsivo de escrever. A formação de quem eu sou deve muito a esse ato. Coleciono, desde então, cadernos que ocupam uma prateleira inteira onde a escrita é um prolongamento da respiração, mas também uma pequena obsessão, uma mania adquirida. Escrever virou uma necessidade, sim, mas também uma espécie de compulsão patológica. Como se, para entender, eu precisasse escrever. Hoje em dia posso afirmar com todas as letras que eu derramo tinta. Venho derramando tinta desde sempre. E esse tipo de escrita, tão particular e íntimo, está ligado ao que passei a chamar de “Quarto Primordial”.

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Todos nós temos um quarto primordial que está ligado à nossa essência. E não é nada muito elaborado, não. Trata-se daquele momento da vida – que normalmente é na passagem da infância para a adolescência – onde uma música faz teu coração bater mais forte e você fecha a porta do teu quarto ou do teu canto mais secreto na casa e imita sua cantora preferida usando a escova de cabelo como microfone. E isso vai se estendendo para um contato mais forte com coisas que te movem, que te fazem estar apaixonada pela vida. Um apaixonamento que pode ser por outra pessoa, pode ser por um livro, por um filme, um esporte, por um caderno, por um estojo com canetas, por um momento do teu dia, enfim… O quarto primordial é aquilo que faz com que você se sinta vivo. O tempo esparrama, a pele dilata, o coração encaixa. Estamos vivos e tudo faz sentido. Nem que seja por um breve instante.

O exercício de uma vida, pelo menos da minha, é manter esse quarto ativo até hoje (e para sempre). Mas, ainda nessa época dos primórdios, também fui me ligando aos livros que meu avô, o jornalista Moacyr Corrêa, me dava. Pouco a pouco, a grande biblioteca dele foi ficando menor e minhas estantes de livros “que fazem o coração bater”, como na lista de Sei Shonagôn, iam ficando cada vez mais repletas. Foi ele que me deu “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë: uma edição em capa dura, num tamanho que encaixava perfeitamente nas minhas mãos. Devorei aquela história e esse também foi meu primeiro “amor táctil” por um livro. Eu namorava vitrines de livrarias e sonhava. Cada livro que eu conseguia comprar ou cada um que ganhava do meu avô era uma conquista. Livros adquiridos, que ficavam imantados de valor. Lembro de uma edição de “As Flores do Mal”, de Baudelaire, da editora Nova Fronteira. Um livro robusto, com capa vermelha. Custava caro e eu consegui comprar. Para preservar o livro, encapei com Contact. Eu o levava sempre comigo e lia em todos os lugares. Tive paixão real por aquele livro. E por muitos outros. “O Jogo da Amarelinha (Rayuela)”, de Júlio Cortazar, “The Golden Notebook”, de Doris Lessing, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, todos os Becketts, todos os Bolaños, são exemplos de livros que fizeram parte do meu quarto de formação e que agora estão no meu DNA. Hoje em dia a biblioteca do meu avô mora na minha casa e consegui, com o tempo, criar a minha própria.

Mas, voltando aos meus 17 anos, no quarto primordial que eu tinha na casa da minha mãe, percebi que eu queria escrever. Queria viver escrevendo, mas nunca me passou pela cabeça ter que escrever para viver. No meu colégio, no terceiro ano do ensino médio, tinha um mês profissionalizante e quem foi falar de literatura foi nada menos que Zé Miguel Wisnik. Eu tinha (e ainda tenho) uma admiração profunda por ele, pelo trabalho dele, pelo jeito paulistano “sem ser daqui” dele. A primeira coisa que ele falou naquela aula foi que literatura não era diário. E eu levei um choque, porque pensei: “mas eu sou uma escritora de diários!” Fui fazer Faculdade de Letras, na USP, assisti a muitas aulas do Zé Miguel. Fui aluna de Alfredo Bosi, Modesto Carone, orientanda de Davi Arrigucci Jr. em iniciação científica (uma das pessoas mais importantes na minha formação).

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Hoje penso que Zé Miguel tinha total razão. Literatura não é escrita de diário. O diário, eu penso, pode ser o manancial para a construção literária. É bem legal o exemplo do Ricardo Piglia que sempre escreveu diários e, antes de morrer, pegou a massa bruta dos escritos de uma vida e modelou “Os Diários de Emilio Renzi”. Não se trata somente do fluxo narrativo que vem do pensamento imediato, mas, sim, de uma elaboração posterior. Uma incansável elaboração. Acredito que foi a literatura que me levou para o teatro. A palavra dita como uma extensão da palavra escrita. A dramaturgia se revelando como o texto que é escrito para ser dito foi uma descoberta incrível para mim, que sempre escrevi “como quem diz”. Fiz do teatro o meu ofício, meu ganha pão. Mas estar em cena é uma possibilidade de convívio com o texto dentre as muitas outras que cultuo no meu dia a dia. Costumo dizer que, para além de qualquer nomenclatura de profissão, para além de qualquer cargo que eu ocupe, “o meu lance é a palavra”.

Minha mãe, Alexandra Corrêa, também era uma escritora de diários. Ela morreu cedo e, como todos que recebem a sentença de um diagnóstico, sabia que ia morrer (todos vamos, mas nos esquecemos disso na maior parte do tempo). Minha mãe, da maneira dela, se preparou para a morte durante quatro anos, com muita alegria, saúde e leveza, aceitando que é parte da vida. Extremamente organizada, fez parte dessa preparação para a morte estar com os documentos em dia. Ela ria dela mesma: “quero estar com minha documentação em ordem quando eu morrer. Vai que… Né?” Convocou uma reunião comigo e com meu padrasto Aluízio e nos mostrou onde estavam todos os documentos, separados em pastas etiquetadas: certidões, escritura, cartão do banco, seguros, senhas, documentos necessários para possíveis inventários. Aproveitei a deixa e fiz a pergunta que estava ensaiando faz tempo: “e os diários?” Passei a vida vendo ela preencher, com caneta esferográfica, cadernos e cadernos de capa dura, todos do mesmo tamanho, acumulados numa parte da escrivaninha. Ela imediatamente respondeu: “queimei todos”.

Ela e meu padrasto começaram a rir porque parece que ela resolveu queimar os diários no tanque de lavar roupa e quase provocou um incêndio na área de serviço. Minha mãe me disse que fazia parte do seu ritual de desapego e que diários a gente escreve pra isso: pra queimar. Meu choque inicial, com o tempo, se tornou um dos meus maiores aprendizados: diários a gente escreve pra queimar. Claro! Quando me dei conta disso, minha escrita passou a não ter mais nenhum compromisso com a posteridade. Virou diário aterrado, arraigado no presente. Sem compromisso com nada. Minha mão se libertou e a escrita fluiu de um outro jeito. Minha mãe já havia queimado todos os seus diários, estava quase pronta. Porém, ela ainda estava escrevendo um, com capa de cetim vermelho e estampa japonesa. Foi o único que restou. E ele está comigo até hoje. No meu diário da época da morte da minha mãe, eu escrevi páginas e páginas para tentar entender aquela ausência. Depois, durante quase 10 anos, fui reescrevendo e reelaborando esse diário, transformando a escrita colada no momento presente em literatura e fabulação. A última palavra que minha mãe escreveu no diário dela, em 18 de junho de 2006 foi: Avelã. Nada mais. Uma única palavra solta numa folha de diário, abaixo de um cabeçalho, com uma data de um dia qualquer. E “Avelã” é o título do meu primeiro livro pela Editora Fora de Esquadro. Na quarta capa, explico:

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“Avelã (anotações para um romance com tema de morte): A última palavra que minha mãe escreveu em seu diário foi: “Avelã”. A data é 18 de junho, um domingo. Ela morreria 79 dias depois, numa terça feira, às dezesseis horas e vinte e oito minutos. O telefone deve ter tocado, a máquina de lavar lá de casa devia estar ligada com a segunda leva de roupas do dia, alguém passava o café no coador de meia na beira da janela, 79 dias depois da palavra “Avelã” ter sido escrita no pequeno diário com capa de cetim. Não posso me perder.”

O livro está pronto para ser impresso, esperando o momento (entre uma novela aqui e uma peça ali) em que eu possa me dedicar a encadernar as poucas cópias que vou produzir manualmente no meu ateliê. Hoje, o Quarto Primordial se expandiu. Virou uma sala ampla, com uma vasta biblioteca, dezenas de cadernos feitos e preenchidos por mim, com impressoras, guilhotina, prensa, bancada de trabalho, ferramentas de encadernação. Considero que tudo é escrita: o primeiro jorro de escritos em diários de capa vermelha (depois incansavelmente destilados até virar literatura), o desenho gráfico do livro, as imagens que o compõem, o formato, o tipo de costura e encadernação, tudo “fala”, tudo faz parte da história. Minha mão passa por todas essas etapas. Com todas as ferramentas existentes para se fazer um livro, escrevo como quem diz.

São Paulo, 20 de agosto de 2024

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O atelie de Isabel Teixeira (Isabel Teixeira/arquivo pessoal)
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