Fernanda, anfitriã da utopia
Em sua coluna mensal, a atriz e poeta Elisa Lucinda escreve uma carta de amor à Fernanda Montenegro, prestes a completar 95 anos
Há mais de dois meses vi a peça da Fernanda Montenegro, “A cerimônia do Adeus” de Simone de Beauvoir, e ainda estou lá dentro, daquela sala, daquela noite , daquele domingo frio de São Paulo. O que me faz permanecer ali? Ou melhor, o que me faz trazer aquela experiência como um segredo que só nós, as quinhentas pessoas que estavam dentro do teatro, testemunhamos e vivemos?
Há uma vivência coletiva dentro da sala de espetáculo. Lágrimas e epifanias são desfrutadas por aquele grupo unido pelo gosto à mesma arte, de modo particular e universal. Há um desfrute específico de viver tal ficção em comunidade, que é o que uma plateia é: coletivo de espectadores. Todos serão capturados, encantados, seduzidos pelo talento que se nos apresentará naquele espaço, com o público no escuro, e a luz , precisa, discreta e orgânica luz, só no palco.
De alguma maneira estamos apartados um do outro. Cada um com sua alma, suas sinapses, vivências, identificações e associações particulares , mas também de mãos dadas aos outros, expostos em conjunto na mesma dobra do tempo à mesma sensorial experiência. Existe ali uma inevitável irmandade.
A arte teatral tem a liberdade infinita do sonho e estamos acordados na viagem sonhada pela artista e sua trupe. É real. E não. Sabemos e tememos aquela verdade, e isso nos irmana. Tudo ao vivo. Gastará o tempo igual ao da vida. Passará uma parte do tempo da vida ali dentro. Uma, duas horas. Conquistará meu peito alguma daquelas ilusões? Poderíamos chamar de ilusão? Não.
Ali se produz representações da realidade, inclusive seus delírios. “Magia sem mistério”, diz Amir Haddad, precioso mestre, amigo antigo de nossa Fernanda, e pra minha sorte, amigo amado também meu. O que o mestre mostra é que tudo pode ser exibido às claras com tudo que tem dentro e, sem enganar o público, ser capaz de produzir cenas poderosamente envolventes.
Ela está ali, soberana, tranquila, a atriz, amparada em suas raízes, em sua alma suburbana internacional, seu coração amoroso , e desfila sem ostentação a expertise que atrai a atenção do mundo. Uma mistura perfeita de sofisticação com refinada simplicidade: apenas uma leitura. E é tudo. Vemos Simone, vemos Fernanda dando carne à obra da atriz. Sem fingimentos, sem truques, porém está mergulhada em uma profunda imersão no reino das palavras e seu baú parabólico de significados. Não é apenas uma leitura. Fernandona conhece o caminho e nos leva a ele.
A sala de espetáculo no SESC era híbrida e atravessava os tempos. A artista que nos uniu não se restringiu a falar apenas à sua geração, e formou ali um ambiente repleto de pessoas jovens misturadas à cabeças brancas e coloridas. Uma variedade estava nela representada, naquela mulher, naquela entidade cultural brasileira vivíssima à nossa frente, e mais uma vez, anfitriã de nossa utopia. Havia também muitos pretos, cadeirantes, gays, trans. Uma democracia sortida que, dias depois enfeitou o [Parque do] Ibirapuera com 15 mil pessoas para ouví-la, vê-la e aprendê-la.
Também é verdade que estavam todos indo ver a senhorinha, a mulher de 94 anos, a grande atriz, a grande dama da cena brasileira, a premiada pelo exímio talento, pela coerência ética, pela sabedoria, pela vida anti celebridade, sendo a rainha que é por isso mesmo. Havia como que uma nuvem muito nítida, embora impressionista, de absoluta confiança no que se daria ali, do ponto de vista da indiscutível competência. Era unânime.
A expectativa geral era de que, mesmo sabendo que se tratava de Simone de Beauvoir, a feminista, trangressora, chacoalhadora dos conceitos que aprisionam o feminino por tantos séculos, talvez a maioria esperasse ver algo menos provocador. Como se houvesse uma aura de devoção misturada ao conceito de santidade, muito por conta dos 94 anos da artista e as amarras que esta conta pode produzir.
Não que Fernanda imprima isso por ela, mas a ideia da velhice ainda traz o reino da caretice para perto do conceito . É como se a caretice fosse a dona da velhice. Como se a maioridade terceira estivesse sob sua gestão, sob o seu comando enfim, e nos rendêssemos, na falta de outro fim, à ela. É como se a última etapa de nossas vidas já estivesse dada, decidida; fosse previsível.
Mesmo tendo hoje como faróis Caetano, Ney, Gil, Tony Tornado como os mais jovens velhos do mundo, minha geração recebeu uma educação ainda antiga de uma propaganda que associa a velhice à decadência. Fase contada mais pelos números do que pela pulsão de vida de cada um, pelo desejo de cada ser. Então, tem gente que a partir de uma certa idade começa a dizer coisas como: agora não dá mais pra sair de noite, ir ao teatro, isso não é mais pra mim, não tenho mais energia pra ensaiar, para o sexo, para festa, para praia. É como se a velhice fosse obrigatoriamente uma desistência, que estivesse condenada ao comando do desânimo, do desamor pelo viver.
Logo, é como se esquecêssemos que progressistas, comunistas, revolucionários, doidões, vanguardistas também amadurecem. Envelhecem os apaixonados, os românticos, os utopistas, os aventureiros, os irreverentes, os sonhadores. Não é razoável que se rompa com o próprio modo de ser, a partir de uma idade.
Estamos então condenados a uma bipolaridade futura? Um dia todos seremos outros? Opostos ao que éramos quando jovens? Ora, tudo o que somos, vivemos e sabemos ganha mais contorno, mais uma aula, a cada dia, e a cada momento fortalecemos nossos saberes, confirmamos outros, dispensamos os que não se sustentaram no tempo, e assim vamos, como todos, expostos ao amor, ao trabalho, à nova ideia, ao desconhecido.
A rigor, alguém que foi comunista, alguém de esquerda ou simplesmente progressista, não tem naturalmente a tendência de deixar de sê-lo na velhice. Não estava só na juventude sua ideologia, seu sentimento de cuidado com o mundo. Comparo esse pensar ilógico a quando encomendam missa de sétimo dia para alguém que foi na vida um grande ateu ou combatente dos princípios da Igreja Católica. Toda vez que isso acontece, penso: acabaram de trair o defunto. Vivo fosse, o próprio morto não iria a tal ritual.
Dito isso, o que nos quebra dentro daquelas cenas do teatro? O que provoca em alguns , momentos o silêncio ensurdecedor da plateia? É que aquela senhorinha nos enganou, aquela senhorinha nos levou para a suruba. Aquela senhorinha põe a gente na cama com Sartre, Simone e mais uns convidados, independente de gênero.
Significa que Beauvoir transava com mulher também, falando o português claro. Então, aquela senhorinha não nos leva para um conformismo, para um moralismo, um conservadorismo. Aquela impressionante mulher nos leva para o lugar que muitos passam a vida acreditando que é abismo, perigo, ou até coisa só da juventude. Nos leva para perto do fogo, a combustão.
Existe uma grande parcela do mundo que, medrosa, usa pensamentos retrógrados ou conformistas como espaços para se refugiar da própria covardia. Para ficar em paz com seu sedentarismo, sua inação, até mesmo sua depressão, sua falta de tesão no mundo.
Mas ali, naquela domingo, estávamos diante de uma mulher que transitava entre as idades, tinha 30, 20, 60 anos, a eternidade. Tudo era de um desnudamento inevitável, porque a atriz se orgulha de levar esse texto aos novos tempos. Vê se. Identifica-o como uma utilidade atual para um mundo tão violento, imerso em várias formas de guerras emocionais e físicas, por conta dos fundamentos sórdidos do patriarcado, ferindo o coração dos homens desde cedo, semeando neles o ódio, e impedindo o desenvolvimento dos homens doces.
Dava pra ver que os argumentos de Simone de Beauvoir são os mesmos argumentos da atriz Fernanda Montenegro, e estes nos expõem a ponto de nos perguntar nos intervalos, nos silêncios , nas entrelinhas: Algum problema com a sexualidade? Ora, é o nosso destino, a base da reprodução humana. Algum problema com a nudez? É a nossa condição, a verdade da natureza humana. Algum problema em falar disso? Compõe nossa honestidade falar sobre o que vivemos.
Nada do que vivi naquela noite permite dúvidas Tudo é incontestável, tudo está num lugar do inexorável, do que não se pode evitar, e a Fernanda encarna tal revolução. Só que não se esperava uma revolução num corpo de uma velha. Velha? Não, não, velha não. Velha é uma palavra muito velha para ela, não combina, não a traduz. A dignidade enfeita muito a beleza dessa rainha. Ornada com os atributos estéticos de uma árvore frondosa, acrescentada pelo nosso olhar que a vê como o símbolo inequívoco da cultura contemporânea brasileira.
Sua geração de brilhantes atores, sua turma, sua gente mergulhou em mares nunca antes navegados para criar uma interpretação brasileira, uma não cópia do modelo europeu, formal demais para nossa idiossincrasia. Fernanda é da estirpe dos vocacionados que nunca faltam ao teatro e jamais se negaram à sua convocação para melhorar o mundo, para retratar em seus palcos as contradições e apelos da sobrevivência democrática deste mesmo mundo. Ela é farol meu e de minha gente.
Velha é palavra que não condiz com ela porque ainda quer dizer incapacidade, não exercícios, não disposição para palco, não dedicação ao próprio trabalho, não ousadia, não tempo ofertado com amor à coisa alguma. Velho quer dizer paralisação.
Ali estava uma mulher potente, reluzente e calma em sua humilde soberania, contradizendo o conceito. Desmoralizando-o. O que é que aquela mulher estava fazendo, bagunçando a nossa cabeça, fervilhando nosso coreto?
Estou, asseguro-vos, até agora naquela sala. Nenhum recurso especial além de uma luz perfeita e um domínio cênico impecável. Não havia uma orquestra inteira pulsando na hora certa com um elenco imenso de brilhos, e muitos efeitos especiais. O que havia eram os recursos humanos de uma artista plena, perto do seu centenário, e que desautorizava de tal modo os que se aposentaram da vida antes de ela acabar, que era quase constrangedor quando se percebia o suspiro mudo dessa confirmação.
A plateia revela-se em alguns sutis silêncios de desconforto, ao mesmo tempo em que experiencia receber o êxtase daquele dom. Um talento bem desenvolvido produz doses cavalares de encanto. Não se pode medir, mas eu vi a inquietação agindo.
Afinal qual era o espanto? Quem estava ali que, devota do teatro, se posiciona e contribui para o desenvolvimento da sociedade, ao retratá-la propondo formas de paz?
Era era, aquela mesma Fernanda do filme “Eles não usam black tie”, que só foi feito em plena ditadura porque havia esse elenco ousado que ela teve a coragem de encabeçar, protagonizando a senhora de uma vida operária nacional daquela hora, difícil hora cívica de tempos sombrios. Era risco. A extrema-direita estava no poder e tinha autorização para prender, ofender e torturar quem pensava diferente de suas ordens. Não conheço os bastidores dessa realização, mas sei que, sem uma coragem heróica, imagino que deve ter sido difícil para outros atores e atrizes toparem filmar.
No entanto, eu a reconheci, era ela, a mesma inquieta artista de uma vida inteira pensando o seu tempo. Alguma coisa ali também me remetia à Dona Doida, peça em que nossa Fernanda leva o pensamento poético da grande poeta mineira Adélia Prado ao Brasil todo. E a Adélia é aquela a quem uma jornalista perguntou certa vez, se ela própria não achava alguns dos seus versos escatológicos por se referirem aos nossos líquidos íntimos. Ao que a poeta respondeu: “Oh, minha filha, é nossa condição. Não inventei não, uai..”
Vi todos os seus caminhos, sua coerência, o conteúdo de suas entrevistas, filmes. Estava tudo naquele palco, naquele domingo que ainda mora em mim. E é disso que se trata, essa é a lição, essa é a aula de hoje, o evangelho apócrifo da educação pela arte.
Se aos 95 anos, a serem comemorados neste 16 de outubro, sua agenda de turnês pelo país e compromissos audiovisuais está mais ativa do que a de alguns artistas mais jovens, do que estamos falando então?
É hora de não identificar mais como paraíso, como império da beleza, como único sinônimo da própria vida útil, a palavra juventude. Ao invés de nos lançarmos com fúria sobre nossa estética madura, desfigurando nossos traços pessoais em busca de uma juventude eterna, uma “beleza” que está no outro, um efeito de filtros com sucessivas cirurgias almejando a Nosferática condição, deviamos almejar não nos perdemos de nós, desejar um caminho coerente em nosso tratado ético para que sempre nos reconheçamos no espelho.
Afinal, a terceira idade é o tempo soberano da liberdade. Por isso é a melhor idade. Ideias que temos quando somos jovens, muitas vezes só são respeitadas quando passa o tempo, e aí os que eram desconcertantes jovens vanguardistas incompreendidos, podem se tornar referências , mestres, quando se tornam senhoras e senhores.
Fernanda Montenegro está amadurecendo, na nossa cara, bonita, cheia de planos, chorando emocionada, desejando que demore muito a chegar o dia da sua última sessão. É louca pela vida. Apaixonada por ela. Não negociou sua liberdade, não negociou sua ousadia, não se acovardou, não “amarelou” com as idades . Ao contrário, sua veterana coragem, conduz sua ousadia em segurança para o inédito território da maturidade.
Naquela sessão, sustentando a existência onipresente através dos tempos da feminista filosofia de Simone de Bevouir, da anti-bélica proposta de vida dela, da libertação à qual nos incitou, entendemos o recado de que das duas levamos o puxão de orelha necessário e aguentamos a seco a quebra de algumas ilusões que “A Cerimônia do Adeus” nos traz, ao mesmo tempo que nos sugere uma vida menos hipócrita, e com novas dimensões.
Como alguém ciente de que há enorme beleza no poente, e como se a peça anunciasse que um dia, cada um de nós, tal qual o sol nos poremos, à exemplo da lindeza de um crepúsculo, Simone nos faz crescer nos emancipa. “Sartre morreu, e minha morte não nos reunirá”, diz sua voz feminina, lúcida, coletiva, vanguardista, potente, desafiando nossa lucidez para que estejamos à altura do nosso tempo.
Para quem quer uma pessoa que recue dos sonhos e planos quando envelhece, esta veterana moça não serve. Ela desobedece.
Elisa lucinda, primavera de 2024