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Como Joana d’Arc e Maria Quitéria quebraram barreiras de gênero

Escrito pela socióloga Isabelle Anchieta, a obra tece as semelhanças entre personagens que buscavam liberdade e autonomia

Por Beatriz Lourenço
Atualizado em 8 mar 2024, 19h37 - Publicado em 8 mar 2024, 11h28
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Capa do livro "Revolucionárias Joana d'Arc e Maria Quitéria (Editora Planeta)  (Editora Planeta/divulgação)
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Para a socióloga Isabelle Anchieta, uma “revolução” só pode existir com a tomada de consciência em busca de uma liberdade. E essa característica é encontrada em duas personalidades históricas: Joana d’Arc, primeira mulher na história a liderar o exército francês, e Maria Quitéria, primeira brasileira a lutar no exército nacional pela Independência do país (em uma época onde somente homens eram permitidos no batalhão e mulheres não podiam sequer sair de casa sozinhas). Neste mês, elas ganham um livro escrito pela pesquisadora, que já está em pré-venda e será lançado pela Editora Planeta dia 1 de abril. 

A obra Revolucionárias – Joana d’Arc e Maria Quitéria cruza as duas trajetórias e analisa as motivações que as levaram a romper com as normas. Diferente de uma biografia, a leitura oferece uma análise do contexto histórico, social e cultural das respectivas épocas. Apesar da distância temporal de 400 anos, as personalidades se assemelham na vontade se impor enquanto mulheres. “Elas vão contra todas as barreiras impostas pelo seu entorno e superam isso”, diz Isabelle, mesma autora da trilogia Imagens da Mulher no Ocidente Moderno (Edusp – 2020), em entrevista à Bravo!. “Elas eram destemidas, iam à frente enquanto seus soldados estavam atrás. Arriscavam sua vida nas batalhas ao mesmo tempo em que eram contraditórias, humanas.”

Segundo a autora, a importância de contar essas histórias passa não só por conhecer de onde viemos e ressaltar aquelas que transformaram sua época, mas entender as semelhanças com os dias atuais. “Ambas vivem em contextos em que o nacionalismo entra em questão para formar a identidade nacional. E hoje vivemos novamente um momento polarizado em que esses mecanismos de estereotipação dos outros e a desumanização voltam a acontecer. É um perigo e um desafio”, reflete. Na entrevista abaixo, a autora entrega mais detalhes sobre seu processo de pesquisa, fala sobre protagonismo feminino e sobre o conceito de “heroínas imperfeitas”, defendido no livro.  

Como surgiu a ideia de escrever o livro?
Surgiu de um vazio que senti quando finalizei a trilogia “Imagens da Mulher no Estado Moderno”. Pesquisei durante oito anos a trajetória da mulher desde a Idade Média até a Modernidade e percebi que elas sempre lutaram por autodeterminação. Muitas vezes de maneira astuta, de forma indireta. Aí senti falta de analisar aquelas que enfrentaram o sistema de uma maneira mais direta. E essas histórias me pareceram absolutamente fora da curva. 

Joana d’Arc, no século XV, lidera o exército – algo absolutamente improvável. Isso porque a guerra era conduzida por nobres e homens. Cruzar esse lugar era a maior ousadia de todas. Já Maria Quitéria conheci melhor fazendo a pesquisa de campo – há pouquíssimas coisas escritas sobre ela. O paralelo entre elas foi feito para mostrar, inclusive, que a história da mulher não é esporádica. Ela sempre se repete.

Qual foi seu processo de pesquisa?
Ouso dizer que Joana D ‘Arc é a mulher mais bem biografada da história. Todos os grandes autores e historiadores já escreveram sobre ela. E o contrário aconteceu com Maria Quitéria, há apenas uma página sobre ela no Brasil. E isso é sintomático até para representar como nosso nacionalismo é frágil e como construímos os nossos heróis. Na França e na Bahia percorri nove cidades. Fui para zona rural, onde Quitéria nasceu, visitei onde ela fez as primeiras batalhas e fui para a Ilha de Itaparica, onde ela luta uma batalha junto com Maria Filipe de Oliveira, uma mulher negra.

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Isabelle Anchieta, autora do livro “Revolucionárias Joana d’Arc e Maria Quitéria” (Editora Planeta/divulgação)

O que você encontrou na sua ida à campo?
Cruzei muitas informações e descobri mulheres reais. Inclusive, até uso o termo “heroínas imperfeitas” porque não as recompus de forma idealizada. Isso porque elas eram contraditórias. Uma das coisas que me impressionou no caso da Joana D’Arc foram suas ambiguidades: uma escultora, Marie d’Orléans, tem uma peça em que ela é representada com um cavalo passando por cima de um soldado inglês, mas chorando – e isso é muito humano. 

O que faz com que ambas consigam desafiar as barreiras de gênero impostas por seu tempo?
Ambas são mulheres da zona rural. A ativista Gloria Steinem fala que a coragem é também uma liberdade física, no sentido de ir se testando. Essas mulheres da zona rural têm uma liberdade que talvez as que viviam nos centros urbanos não tinham. Isso porque elas aprendiam a atirar desde cedo, já que ficavam sozinhas no campo e precisavam se proteger. Elas sabiam defender e atacar. Para você ter ideia, Maria Quitéria vivia um momento em que as mulheres não podiam sair às ruas sozinhas. Ambas são fruto de uma modernidade rural, dada por essa liberdade do campo. 

Joana D ‘Arc, por sua vez, era conhecida como uma mulher muito eloquente, que sabia se expressar muito bem e convencer as pessoas. Se perguntavam a ela “em que língua Deus fala com você?”, ela respondia “numa língua melhor que a sua”, assim, desse jeito. Ela falava aos quatro ventos que não ia submeter a homem nenhum nessa Terra porque ela só submetia a Deus. Isso dá a ela um poder gigantesco. E eu sempre coloco isso em questão porque a primeira vez que ela escuta as vozes divinas é quando os pais estavam querendo arranjar seu casamento, mas ela não queria. Portanto, ela joga o jogo. Pega a moral da época e subverte a seu favor.

Qual é a característica que mais ressalta nessas personagens?
Tanto Maria Quitéria quanto Joana D ‘Arc são donas de uma clareza muito forte. Elas lutavam em prol de uma liberdade que elas confusamente sabiam que mereciam – ainda que todo o entorno dissesse que não era possível, que não era para elas. No fundo, elas queriam algo muito simples: se expressar e determinar suas escolhas. 

O que as duas têm em comum?
Ambas vão descobrir uma vocação militar absolutamente inusual. E ambas vivem em contextos em que o nacionalismo entra em questão para formar a identidade nacional. Essas mulheres estão muito conectadas ao que chamo de nação ou comunidade afetiva, que é quando você se identifica com aquele grupo. Joana d ‘Arc se entende como francesa e, Maria Quitéria, como brasileira. Por conta disso, elas arriscam a própria vida. 

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Elas também só tinham duas opções, o convento ou o casamento. Ou seja, ambas enfrentaram os mesmos desafios enquanto mulheres. Hoje vivemos novamente um momento polarizado em que esses mecanismos de estereotipização dos outros e a desumanização voltam a acontecer. É um perigo e um desafio.

Qual é a importância das mulheres serem reconhecidas enquanto protagonistas do seu tempo?
Entendo que a história das mulheres é mais feita de desconhecimento do que de ausências. Elas sempre estiveram presentes em todos os momentos da história. Seja nos bastidores ou à frente. O que falta é contar essas histórias – é um trabalho muito importante e necessário a ser feito no Brasil. A escultura mais importante de Maria Quitéria, por exemplo, está no Lar de Soledade. Mas o espaço está abandonado. Essa memória é fundamental porque ela diz do que somos feitos.

E como não demorar a reconhecer essas mulheres que estão à frente do nosso tempo?
Agora isso mudou. Mas também precisamos ser corretos com a história. Maria Quitéria foi reconhecida na época dela. Ela foi condecorada por Dom Pedro e, quando chegou no Rio de Janeiro, parecia uma celebridade local. Ela saiu em todos os jornais e foi valorizada em vida. E essas ondas têm a ver com os interesses políticos, tanto é que ela volta a ser lembrada no período do Getúlio Vargas, quando ele queria se aproximar dos militares. Essas imagens são apropriadas ao longo do tempo, como também foi o caso da Joana d ‘Arc para os monarquistas, católicos e para as feministas.

Para você, o que é ser uma mulher revolucionária?
É aquela que diz “não” ao “não”. A revolucionária é aquela que toma consciência e que questiona os impedimentos. Por outro lado, é aquela que busca algo natural, que é a sua própria liberdade. A palavra “revolução” só pode existir se ela tiver o objetivo da liberdade.

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