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Milton Hatoum busca uma verdade

O premiado autor foi escolhido pelo Clube de Leitura CCBB 2023 e falou com Bravo! sobre seus primeiros romances e sobre o papel da literatura na atualidade

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 3 nov 2023, 11h35 - Publicado em 3 nov 2023, 11h33
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 (Wanezza Soares/divulgação)
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Milton Hatoum sabe que não há muito o que celebrar. Não se trata de sua bem-sucedida carreira como escritor há mais de 30 anos, em que acumula elogios da crítica, dois Prêmios Jabuti e vários outros de literatura. É mais sobre o contexto do mundo: as guerras, a destruição da Amazônia e a violência contra pessoas negras. Todo esse peso parece acompanhá-lo constantemente, como alguém que precisa suspirar antes de cada frase. No entanto, isso não diminui sua urgência em combater tudo isso com sua própria arma: os livros. “Não podemos simplesmente nos calar e cruzar os braços. Sempre há um espaço, mesmo que mínimo, para dizer o que muitos não querem dizer”, afirmou em uma entrevista à Bravo!.

O espaço que Milton encontrou para lidar com as apreensões daquilo que não pode mudar não se limita às páginas de uma publicação, mas também em espaços físicos de discussão com pessoas de diferentes gerações e experiências de vida diversas. Recentemente, sua obra “Dois irmãos” (2000) foi incluída na lista de leituras da Fuvest por pelo menos três anos e está na grade de estudos de várias escolas em todo o país.

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(Companhia das Letras/divulgação)

Neste mês, o mesmo livro foi escolhido pelo Clube de Leitura CCBB-RJ 2023, uma iniciativa que valoriza escritores de estados brasileiros fora do eixo Rio-São Paulo. Nele, o público tem a chance de discutir a obra com o autor em pessoa. O encontro está marcado para dia 8/11, às 17h30, na Biblioteca Banco do Brasil, e nós antecipamos todos os detalhes sobre a experiência em uma entrevista com o autor. Em “Dois irmãos”, o autor aborda a história de irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, que fazem parte de uma família libanesa imigrante em Manaus. Os dois compartilham uma relação de ódio e rivalidade. O romance foi adaptado numa minissérie, da Globo, em 2017, com Cauã Reymond e Antônio Fagundes no elenco.

Em uma conversa com a Bravo!, Milton discutiu seu modo de fazer literatura, mesclando fatos do mundo, sua própria biografia e uma pitada de imaginação. Em seus escritos, há um profundo desejo de alcançar uma honestidade tão íntima que pode revelar uma verdade maior sobre a humanidade. De certo modo, é essa busca que o tem motivado a escrever livro após livro ao longo destas três décadas.

Confira como foi a conversa:

Como você equilibra traços da sua própria memória com elementos da ficção em suas obras? O que da sua biografia você tende a levar para os seus escritos?
Sempre digo que a memória e a imaginação são irmãs siamesas. Escreve-se sobre o passado para fazer viver o passado e o presente. O presente não pode ser entendido sem o passado.

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Na minha ficção, o que há de autobiográfico acaba virando ficção, uma invenção. Diria que o que há de mais autobiográfico nos meus romances é a trilogia “A noite da espera” e “Pontos de Fuga”, onde eu acompanho mais ou menos de perto a minha trajetória de vida.

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(Wanezza Soares/divulgação)

Você chegou a dizer que pretende parar de escrever após terminar a série “Um lugar mais sombrio”, pois não teria mais o que dizer. Você ainda pretende seguir com esse plano?
Foi uma entrevista que dei há muitos anos. Estava muito cansado, pois tinha terminado a trilogia, a primeira versão, o grande rascunho. Mas não sei, acho que se eu espremer um pouco o passado, ainda dá alguma coisa [risos].

Essa trilogia abrange um período da minha vida que foi fundamental na minha formação, por isso que são romances de formação. Sobretudo, os dois primeiros. Mas estou escrevendo contos também que eu gostaria de reunir em um livro futuramente. Escrevi outro romance, que acabei não publicando, que pode ser lido independentemente da trilogia, mas que traz alguns dos mesmos personagens. Eu não parei ainda. Não pretendo escrever mais livros além desses, mas nós nunca sabemos.

Suas obras são muito caras pelo audiovisual. Soube que você acompanhou mais de perto a produção de “O rio do desejo”. Você tem vontade de produzir conteúdos para o cinema?
São linguagens muito diferentes. Nunca pensei que meus livros seriam adaptados, nunca escrevi pensando nisso. Mas em “O Rio do desejo”, foi a primeira vez que escrevi um texto com um argumento que deu elementos para expandir o roteiro, pois o conto era muito enxuto. Faltavam coisas, personagens e um trama mais complicada. E fiz isso a pedido do diretor, Sérgio Machado. Essa foi a minha participação.

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Fiz outros trabalhos para audiovisual, mas sempre na linha de escrever um argumento. Acho que tive sorte com os cineastas porque eu gosto das adaptações que fizeram. Agora vai sair a do Marcelo Gomes (“Relato de um certo Oriente”). Já assisti em uma cabine fechada e achei lindíssimo.

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(Companhia das Letras/divulgação)

Você comentou que não sabe escrever para o audiovisual. É difícil de imaginar que você não saiba escrever, independentemente da linguagem que for. Quais são as dificuldades nesse tipo de escrita em relação à literatura convencional?
Acho que é uma técnica muito específica. Quando eu escrevo um romance, dou muita ênfase a um aprofundamento psicológico das personagens, ao conflito interior, a um drama moral. Acho que o roteiro, muitas vezes, não contempla isso. O romance tem momentos de digressão, reflexão, confissão. É de uma grande subjetividade. O roteirista precisa pensar muito na imagem. Acho que toda essa sondagem psicológica pertence mais à literatura. A imagem é o que prevalece no roteiro. Mas há uma aproximação entre elas. Os cineastas aprenderam muito com a literatura. Depois, com o cinema, os escritores também aprenderam com o audiovisual.

Nunca me animei a escrever um roteiro porque não conheço essa técnica. Prefiro usar meu tempo para escrever romances.

Você possui algum método de escritura? Como organiza suas ideias e as transforma numa narrativa mais longa?
Sempre parto de alguma experiência pessoal, de algo que me inquieta e, ao mesmo tempo, me comove. Armo uma ideia antes de escrever, quase sempre a partir de um romance que li, coisas que vivi. E depois escrevo sobre as personagens, sobre o tempo. Faço um esboço daquilo que quero escrever, sobretudo da forma, do narrador, das relações entre narrador e personagens. O romance mesmo se faz no momento da escrita. Muitas coisas são alteradas ou desprezadas quando começo a escrever.

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(Wanezza Soares/divulgação)

Tem um ponto da dificuldade da escrita que é gostar daquilo que se escreve. Abandonar a vaidade para deixar a escrita fluir. Como é isso para você?
Já desisti de vários projetos, escrevi um texto enorme nos anos 1990 que não publiquei. Você é o primeiro leitor de si. Quando você sente que passou uma verdade, aí você pode ir até o fim e decidir se publica ou não. A única verdade possível da literatura é a verdade das relações humanas. Eu não publiquei alguns textos, fui maior do que a minha vaidade. Vamos dizer que há momentos em que a sua convicção e a sua honestidade prevalecem sobre a vaidade.

Mas se você sente que escreveu uma coisa profundamente verdadeira, acho que o caminho é ir até o fim. Já fui até o fim, mas não publiquei porque estava muito grande, precisava ser reescrito. E às vezes você tem paciência para reescrever, às vezes não. Naquele momento, eu não estava bem. E aí parei para escrever “Dois irmãos”. Levei 10 anos para esboçar esse romance, mas para escrever foi um tempo muito menor.

Você já abriu mão de um projeto e depois retornou a ele?
Não. O que desisti foi em 1980, quando estava na Espanha. Saí do Brasil em 79, comecei essa trilogia naquele ano. Escrevi mais ou menos por oito meses, entre Madri e Barcelona. Eu era bolsista do governo espanhol. Percebi, com a ajuda de um amigo argentino que estava exilado, ele leu e disse ‘Isso aqui ainda é uma crônica, você só pode escrever quando o tempo passar, daqui a 20 anos’. E ele estava muito certo. Ele era um leitor, um poeta, um grande tradutor, ele faleceu há poucos anos. Foi tradutor do Raduan Nassar, do Graciliano Ramos. E aí eu parei tudo e comecei a escrever o “Relato de um certo oriente”.

Ele disse para eu ir atrás do passado, que não convinha escrever sobre o quase presente. E ele estava certo. A distância temporal entre o tempo vivido e tempo escrito é algo importante. É preciso deixar o tempo passar para escrever.

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“Sempre digo que a memória e a imaginação são irmãs siamesas. Escreve-se sobre o passado para fazer viver o passado e o presente. O presente não pode ser entendido sem o passado”

É possível escrever em momentos que estamos deprimidos?
Depende de cada escritor ou escritora. Cada um tem o seu ritmo e responde às apreensões e adversidades pessoais e do mundo de uma forma muito particular. Houve esse governo horroroso que já passou, depois no meio do desgoverno houve a pandemia. Agora está havendo o massacre contra o povo palestino. Isso me toca profundamente porque acontece há décadas. E eu nunca deixei de escrever, muito menos de ler. Claro que sempre há momentos de angústia que nos paralisa e nos deixa aflitos, mas de modo geral eu tento responder a isso tudo, modestamente, com o meu trabalho diário de leitor e escritor. Até mais de leitor porque eu leio muito mais do que escrevo.

Nesse momento que você comentou que esteve na Espanha, você estava exilado?
Não. Eu fui preso pela segunda vez na PUC-SP, na invasão da universidade, em 1977 e aí decidi ir embora do Brasil. Fiquei batalhando por uma bolsa até conseguir no final de 79. E aí caí fora do Brasil dos militares. Não fui como exilado, fui como um autoexilado. Eu ia passar quatro meses e fiquei mais de quatro anos.

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(Companhia das Letras/divulgação)

E como foi o seu retorno para o Brasil?
Voltei um tempo depois para Manaus. E lá ainda fiz alguns projetos de arquitetura, depois ingressei como professor da Universidade Federal do Amazonas. Fiquei quase 15 anos lá. Acho que a experiência da vida profissional em Manaus, como professor, foi muito importante para escrever “Dois irmãos” e o “Cinzas do Norte”. São romances aparentados. No fundo, o “Cinzas do Norte” é uma espécie de primo da trilogia “A noite da espera”. É um romance de formação, sobre amizade. Quase todos os outros são romances de formação, menos o “Relato de um certo oriente”. A minha experiência em Manaus foi muito importante. Conhecer de perto, vivenciar a transformação da minha cidade, que já não tinha mais muita coisa da cidade da minha infância. Explorei isso tudo nos meus livros, sobretudo em “Cinzas do norte”.

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“Dois irmãos” é uma obra que voltou com força, ao ser incluída na lista da Fuvest. Você já mencionou que demorou 10 anos para escrevê-lo, e ele foi publicado há mais de 20 anos. E agora com o Clube de Leitura CCBB 2023. Com tantas oportunidades de discuti-lo com públicos mais jovens, é possível que um autor ressignifique e pense em outros aspectos sobre a própria obra? Isso aconteceu com você?

Sim, acho que há muitas perguntas nesses encontros com professores e estudantes, e às vezes não sei responder a todas. Mas há muitos estudos, ensaios e teses, que transcendem os livros. E falam de coisas que não estavam muito claras para mim. A análise crítica revela relações importantes, simbólicas, históricas e sociais. Até mesmo para quem escreve. Você não é ingênuo quando escreve, mas você não dá conta de tudo daquilo que escreveu. O imprevisível conta muito nesse momento. A imaginação é imprevisível e ela é capaz de juntar coisas muito ínfimas com coisas grandes. E tem coisas ali que não são totalmente conscientes. A crítica tenta sondar esses enigmas, sem resolvê-los totalmente.

E sempre descubro alguma coisa nessas teses, nesses encontros. É isso que vou fazer agora no CCBB. Pediram para falar de “Dois irmãos”, mas certamente vou falar de “A noite de espera”, da trilogia, e sobre literatura de modo geral.

Eu nunca deixei de escrever, muito menos de ler. Há momentos de angústia que nos paralisa e nos deixa aflitos, mas de modo geral eu tento responder a isso tudo modestamente com o meu trabalho diário de leitor e escritor. Até mais de leitor porque eu leio muito mais do que escrevo”

 

 

Recentemente, você disse que a literatura estava em declínio. O que te leva a pensar isso?
Acho que as redes sociais usurparam o tempo das pessoas e o tempo da leitura. Já não havia muito tempo para ler porque as pessoas trabalham, têm compromissos, e às vezes estão exaustas. Sobra pouco tempo para leitura. E com as redes sociais isso se agravou. Muitos jovens não vivem mais sem o celular. Para a literatura é um infortúnio porque ela exige uma concentração longa. Eu imagino como vai ser, hoje, um leitor de “Grande Sertão: Veredas” (Guimarães Rosa) ou de “A Montanha Mágica” (Thomas Mann). Acho que a minha geração teve tempo para ler. Nunca me liguei muito em televisão, então eu dedicava muito tempo para leitura. No meu período de formação de leitor, tive tempo para ler.

Você citou a Fuvest, são 110 mil candidatos. Minha esperança é que alguns leiam com atenção e com prazer. Eu fui para dezenas de colégios fazer palestras e são jovens interessados. Você percebe quando as pessoas leem. A minha aposta é sempre na escola, na educação, numa formação mais humanista. É disso que os profissionais precisam, os médicos, os engenheiros, os advogados. Precisam de uma formação humanista porque sem isso pode dar no que deu, como no governo passado. Sem uma compreensão da nossa história, você pode criar uma sociedade muito alienada, muito bruta. E uma sociedade embrutecida aponta sempre para lugares extremos, tirânicos.

Isso aconteceu comigo quando li “Vidas Secas” ainda um garoto. Percebi que havia outro país, outro Brasil, longe da Amazônia e tão diferente. E comecei a pensar quem são esses Fabianos, esses famintos carentes de tudo, inclusive de conhecimento. É sempre a escola. Tomei gosto pela leitura graças a esses livros. Acho que se você ler os livros certos na sua infância ou juventude, você toma gosto pela leitura. Acho que isso foi fundamental para minha vida.

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(Wanezza Soares/divulgação)

Uma personagem muito importante em suas obras e na sua vida é Manaus. Neste ano, o Rio Negro vive sua maior seca histórica. É inevitável pensar que aquilo que se vive é consequência das mudanças climáticas, da destruição e do negacionismo. Qual é sua percepção diante desse cenário?
Essa é uma tragédia anunciada. A destruição da natureza cresceu de forma exponencial nos últimos 30 anos, e isso não desacelerou. As pessoas tinham certo otimismo de que o mundo iria consumir menos, mas o capitalismo não dá trégua. Falar em humanizar o capitalismo é até uma piada de mau gosto, já que ele não humaniza nada. O capitalismo precisa produzir em larga escala para um consumo também em larga escala, e, ao consumir, estamos consumindo a natureza.

O caso de Manaus não é diferente dos grandes ciclones, das tempestades, do que está acontecendo no mundo. Ou chove pouco, ou chove muito. São secas e inundações que se alternam. Não sei qual seria o caminho mais sensato. Há os donos do mundo, e diante deles, nós somos impotentes. No entanto, podemos falar, podemos escrever, podemos criticar, como faz o [Ailton] Krenak.

Tudo isso está ligado ao excesso de exploração, pois somos predadores. Enquanto estamos conversando, estão sendo lançadas bombas a cada 3 minutos em Gaza. Se não estão preocupadas com a vida de crianças, qual a preocupação que terão com o meio ambiente?
Enquanto não são só as bombas, mas também as oliveiras arrancadas pelos colonos. Há gesto mais cruel do que esse? O desmatamento da Amazônia são as oliveiras arrancadas dos corpos dos palestinos. É a alma deles também. São as mesmas coisas acontecendo em lugares diferentes.

Os indígenas aqui, os palestinos lá, a violência contra os negros na periferia. Como pensar num planeta viável com toda essa violência?
No entanto, não podemos simplesmente calar e cruzar os braços. Há sempre um espaço, mesmo que seja mínimo, para dizer o que muitos não querem dizer.

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(Milton Hatoum/arquivo)
Clube de Leitura CCBB 2023 – Com Milton Hatoum

||| Centro Cultural Banco do Brasil – Biblioteca Banco do Brasil – 5º andar  | Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro  | 8/11 às 17h30 | Ingressos gratuitos disponíveis na bilheteria do CCBB ou pelo site a partir das 9h do dia do encontro 

 

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