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Fluxo de pensamento: Tony Ramos

Um dos atores brasileiros mais celebrados reflete sobre a importância da novela e da cultura popular para o país

Por Tony Ramos, em depoimento a Humberto Maruchel
Atualizado em 23 jun 2023, 10h14 - Publicado em 23 jun 2023, 09h00

Eu gravo novela há 58 anos. Estou habituado a ver grandes produções, já participei de produções épicas como Grande Sertão: Veredas. Já fui para Grécia, Itália, Japão e toda América Latina. Já vi de tudo, mas o que acontece no cenário desta novela, Terra e Paixão, é algo de uma enorme eficiência, de um superar-se. Na nossa divisão de cenografia temos grandes arquitetos, designers e você dá de cara com essa direção de arte primorosa. E todo esse trabalho atrelado à psique de cada personagem. Isso é o mais surpreendente.

Os grandes escritores franceses, russos, alemães, ingleses, sempre disseram que o folhetim tem um triângulo mágico: amor, paixão e suspense. Isso está presente em tudo, até mesmo na série mais insensata da produção americana, inglesa, nórdica e coreana. Eu acompanho todas. Nenhuma perde a preocupação folhetinesca: quando, quem, por quê, como vai ser e como termina?

Pegamos, por exemplo, Breaking Bad, uma série imortal e fantástica. Para mim, a melhor de todas ainda é Família Soprano, mas em Breaking Bad vemos esse professor de química com câncer terminal, com um filho que exige cuidados especiais, e a preocupação dele de conquistar ao menos $1 milhão para deixar para o garoto. E aí ele começa a entrar na produção de metanfetamina e vai ganhando dinheiro. Pulando na história, com seis, sete anos de espetáculo, esse homem vira um dos maiores traficantes. A pergunta sempre é: como ele vai terminar? Será que ele vai parar? Vai se contentar com mais de $1 milhão que ele já ganhou?

Texto.

Dostoiévski escreveu Os irmãos Karamazov em folhetim. Depois virou esse livro clássico. Tudo isso para falar que a novela é um gênero que é, muitas vezes, tratada com certo desdém – não por quem assiste. Há uma identidade cultural com a telenovela brasileira, que é, inclusive, fruto de estudos em diversos países, do porquê dar certo seis episódios por semana e uma novela poder, às 21h, atingir 50 milhões de brasileiros. Uma live com muita boa vontade vai atingir 2, 3 mil pessoas. Um show americano se alcança 500 mil ao vivo já é motivo de celebração. Mas um capítulo da novela chega alcançar 50 milhões de pessoas.

O que acontece no processo da telenovela brasileira é entender que ela é de cumplicidade popular, seja na música, na dramaturgia, nas artes plásticas, ou mesmo no gibi. A manifestação popular é respiração de cultura.

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Se você olhar os grandes blocos de bumba meu boi, de frevo – algo que eu tenho paixão –, o carnaval de rua de Salvador, o nosso lindo carnaval do Rio de Janeiro, de São Paulo, a Parada LGBTQIA+. Isso tudo é cultura, é reflexo do comportamento humano, que é reflexo de uma sociedade. E quanto mais livre for essa sociedade, quanto mais democrática, mais esse povo vai se manifestar da maneira que mais lhe aprouver. Evidente que teremos obras mais sofisticadas, mais requintadas e mais complicadas.

Tony Ramos
(Paulo Belote / Globo/divulgação)

Eu cito, por exemplo, o filme O Triângulo da Tristeza. Para mim, esse foi o grande filme do ano de 2022. Fiquei impactado porque ele promove o exercício da reflexão na sua plenitude. Há exageros? Sim, mas que bom. Às vezes, a arte precisa buscar o “exagero” para entender aonde a reflexão poderá acontecer. Ele tem interpretações grandiosas e tem, principalmente, um olhar para essa sociedade contemporânea, como, por exemplo, com a personagem da modelo que vive se fotografando. Uma quase melancólica obrigação de estar se fotografando e alimentando a sua rede social. Esta, por que não, loucura que nos acomete. Não a mim, porque não tenho rede social. E também não critico [quem tem] porque não tenho esse direito. Apenas não é o meu perfil.

Texto.

O que é fundamental para mim nesse filme é a possibilidade de propor ao espectador de resolver como ele termina. Isso é refletir sobre o restante da obra. E em uma sociedade competitiva que vive de um story por minuto, ou que vive da fama por quinze segundos ou que vive de um clique, essa é uma sociedade que está deixando de ler com profundidade, está deixando de refletir sobre o seu comportamento. Não é sobre ter um celular, eu também tenho. Mas em nenhum momento eu deixo que essa febre moderna me contamine.

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Porém, eu acho ótimo o YouTube. Por exemplo, esses dias, eu queria muito ver alguns filmes e entrevistas do Totò (Antonio de Curtis). Talvez muitos não saibam, mas ele foi um dos mais importantes atores italianos. Ele é chamado de Grande Totò até hoje. Era um ator deslumbrante, que trabalhou desde as comédias mais ligeiras, o teatro folhetinesco e burlesco, até [filmes de] Pasolini. Eu me alimento muito disso, sou grato ao YouTube. Eu resgatei uma entrevista do Totò da década de 1960. Assim como resgatei a última entrevista do Alberto Sordi, um dos mais belos atores italianos. Quando ele morreu, seu funeral foi acompanhado pelas ruas de Roma, era um herói do povo. Ele era apenas um ator que fazia muitas comédias. Isso é lindo.

Como dizem os poloneses: “Um ator é um herói do povo porque o representa”.

Eu sinto falta das pessoas lerem. Eu falo isso para os meus netos: “você pode dar um Google no assunto que quiser, mas leia e se aprofunde porque o Google não vai te dar o que grandes ensaios e obras literárias vão te oferecer, indiscutivelmente”.

Texto.

Um livro é parte integrante da minha vida como um jornal físico. Eu sinto falta das revistas e elas estão ficando cada vez mais digitais, e eu não suporto ler num telefone. Sou daqueles que ainda param numa banca de jornal para ler uma revista. Eu adorava revistas de cinema. Lembro da Première. Uma das mais lindas capas foi com Jean-Paul Belmondo, com ele tapando o olho. Que coragem de uma revista botar essa imagem numa capa. Maravilhoso.

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Sou um ator popular que faz e adora novela, mas que sabe o outro lado, que chamam de cultura mais sofisticada. Mas que não acha que esse lado me faz uma pessoa melhor. Grande engano de quem faz aquele ar blasé para arte popular. Isso é negar a respiração ao seu redor. É se isolar numa ilha de conhecimento e dizer “eu me basto”. Que pena!

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