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Revisitar o doce exílio

Os cineastas Luiz Carlos Lacerda, Walter Lima Jr., Bruno Barreto e a atriz Claudia Ohana se encontram em Paraty para rever obras que filmaram por lá

Por Artur Tavares
Atualizado em 10 nov 2023, 17h05 - Publicado em 10 nov 2023, 11h33

A cidade histórica de Paraty já foi muitas coisas. Nasceu como porto importante no sudeste brasileiro durante o período da colônia e chegou a ser a cidade produtora da melhor aguardente de cachaça deste lado do Atlântico. Sofreu um profundo declínio com o fim do Brasil Império e pouco mais de um século depois tornou-se reconhecida em todo o mundo por sua Festa Literária Internacional. Antes da literatura, no entanto, foi cativada por outra das sete artes, o cinema.

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Cercada pela Serra da Bocaina e pelas águas da Baía da Ilha Grande, na divisa entre Rio de Janeiro e São Paulo, com parte de sua área totalmente preservada pelo patrimônio histórico, Paraty tornou-se um grande estúdio a céu aberto durante o período do Cinema Novo. Suas ruas estreitas de pedras redondas, as casas geminadas de paredes retas e grandes janelas, as igrejas, praças, os barcos de pesca e até mesmo os moradores foram incorporados aos filmes de uma geração que revolucionou a linguagem cinematográfica brasileira com roteiros, temáticas e maneiras de produção absolutamente experimentais.

“Uma nave espacial pousou aqui e as pessoas podiam entrar nela”, conta o paratiense Carlos Alberto. “Quando os primeiros filmes foram feitos, mais ou menos em 1968, Paraty era uma cidade ainda em ruínas, meio desbotada. Não havia a rodovia Rio-Santos, os paulistas não vinham aqui. Era uma população que vivia da pesca artesanal, do cultivo da banana, de pequenas agriculturas familiares, e aí chega um filme!”.

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Carlos Alberto, conhecido como Dinho, foi um dos muitos moradores da cidade que testemunharam esse momento e foram transformados pela arte e cultura que a cidade passou a respirar. Aos 57 anos, hoje é dono de um veleiro, mas já teve um bar, trabalhou desde cameraman até assistente de produção, se envolveu na luta política e também na batalha em prol do fomento e da formação de uma nova geração de cineastas locais.

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Em Paraty, entre a segunda metade da década de 1960 e o final dos anos oitenta, foram feitos filmes como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.; Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos; e O Princípio do Prazer, de Luiz Carlos Lacerda; revisitados recentemente pela Mostra de Cinema de Paraty, evento organizado pela Casa da Cultura de Paraty, que aconteceu na cidade no último final de semana de outubro.

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Com curadoria do próprio Lacerda, que exibiu também seu Mãos Vazias, o evento ainda contou com cópias de Gabriela, de Bruno Barreto, Erendira e A Bela Palomera, dois roteiros de García Márquez filmados por Ruy Guerra, além de curtas metragens de todos eles, em uma festa saudosista que lembrou aqueles loucos tempos de gravações. “Nós vínhamos gravar e nos dias de folga tomávamos ácido [lisérgico], ficávamos rodando pela cidade a tarde inteira, assistíamos ao pôr do sol e depois parávamos para tomar canja no Bar do Abel. A cidade era cheia de artistas, a Djanira passava uma temporada pintando aqui, o [poeta] Zé Kleber escreveu um curta [Vila de Nossa Senhora dos Remédios, exibido na Mostra]”, ele lembra.

O cinema floresce Paraty

Se a Rodovia Rio-Santos não demoraria para chegar, foi através dessa primeira geração de cineastas, no final dos anos 1960, que Paraty começou a se desenvolver novamente. Onde antes só havia o Bar do Abel como point da cidade, os primeiros restaurantes, hotéis e pousadas começaram a aparecer. De repente, assim como Dinho, todo paratiense era alguma coisa e também profissional de cinema: “Nós formamos uma mão de obra, entende? Se espalhou por aí que a cidade era legal para se gravar. Então começaram a vir os filmes, e sempre nos perguntavam quem poderiam contratar. Então falávamos, ó, tem o Nelsinho, tem o Cacá, tem o Mário, tem não sei quem. Essa mão de obra acabou se desenvolvendo nos outros filmes que vieram”, explica Lacerda.

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Nelsinho é o apelido de Nelson Luiz Santos Dias, que esteve na Mostra de Cinema para assistir às sessões de sexta-feira e de sábado. Hoje também um senhor, esteve na produção de Como Era Gostoso Meu Francês, lançado em 1970. Seu trabalho era arranjar urucum para pintar os corpos nus de todos os atores, atrizes e figurantes do filme. “A gente ficava lá na Graúna e a minha vida era pegando urucum pra fazer a pintura do pessoal. Eu também levava todo mundo para o local de filmagem e de tarde trazia na Kombi. Não tinha carteira, mas já era motorista”, ele conta, entre risos.

Quando Nelson Pereira dos Santos voltou à cidade para gravar Azyllo Muito Louco, uma adaptação de O Alienista, de Machado de Assis, Nelsinho deixou a produção foi promovido para figurante. “Faltava muita gente pra completar o quadro, né? Por isso pegavam gente daqui de Paraty para participar. Na época eu tinha dezoito pra dezenove anos. Eu gostava, estava sempre com o pessoal. Toda garotada da cidade queria ser figurante.” Indicado à Palma de Ouro de Cannes em 1970, o filme incorporou histórias de malucos reais de Paraty no roteiro.

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Com grande sucesso de público, que lotou praticamente todas as sessões realizadas no Cinema da Praça, a Mostra de Cinema revisitou essa produção cinematográfica que começou por quem encontrou no isolamento da cidade uma possibilidade de trabalhar com cinema longe da repressão da Ditadura e que terminou com clássicos oitentistas quasieróticos como Gabriela e Eu, o Boto. Além de Lacerda, Walter Lima Jr., Bruno Barreto e a atriz Claudia Ohana compareceram, passearam pela cidade e conversaram com o público, compartilharam lembranças, encontraram velhos amigos e contaram histórias daqueles tempos.

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

“Geralmente, os atores vão até as locações de cena só para gravar suas cenas e vão embora, mas me lembro de ter passado meses acompanhando as filmagens de Erendira e A Bela Palomera”, conta Claudia Ohana. Ela não foi a única. Sônia Braga, estrela de Gabriela, também passou uma temporada na cidade, assim como Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, que também gravou um filme por lá.

Naquele momento, gravar em Paraty era como poder reimaginar o mundo, ou pelo menos foi o que Walter Lima Jr. fez com seu fantástico Brasil, ano 2000. “A questão fundamental do filme é a da identidade, do desajuste do tempo em relação ao que estávamos vivendo. Projetávamos o Brasil para os anos 2000 e vivíamos no subdesenvolvimento. Brasília e a favela, entende?” No filme, uma família de retirantes sudestinos planeja começar vida nova no Nordeste brasileiro depois de uma grande guerra. Mais ou menos como em Apocalypse Now, o caminho é repleto de figuras beligerantes e outros disfuncionais afetados pela ideia do progresso através da militarização. “Era um espanto que a gente tivesse feito uma cidade como Brasília. Aquela modernidade toda, aquele sonho de modernidade e um país atrasado. Metade da população era analfabeta, não é? E vivemos isso até hoje.”

Mesmo no auge da censura do Ai-5, os cineastas que gravavam em Paraty nunca foram incomodados pelo regime militar enquanto estavam na cidade produzindo seus filmes. “Inclusive, eles eram financiados pela Embrapa”, lembra Lacerda. “O órgão aprovava os filmes e dava uma ajuda para a produção. Só depois de gravados é que os censores mandavam cortar.”

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Walter Lima Jr. recorda que Brasil, ano 2000, teve 15 cenas proibidas pela ditadura: “O filme foi censurado um pouquinho antes do AI-5. Depois de 15 dias, baixaram a lei, mas eu já tinha o certificado de censura. Aí o filme foi exibido em Porto Alegre, e quando passou em São Paulo houveram manifestações: os estandes na porta do cinema, com fotografias e tudo, foram quebrados. As vitrines, os vidros do cinema… foram quatro semanas em cartaz e depois essas manifestações. Depois do último dia de exibição, foi retirado de cartaz e devolvido à censura.”

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Mesmo colecionando prêmios e indicações em festivais importantes no exterior, Walter Lima, Nelson Pereira e muitos outros que gravaram em Paraty enfrentavam, filme após filme, a mesma situação. E mesmo assim, não deixavam de voltar a usar a cidade idílica como estúdio: “Na cidade, os militares, os guardas da marinha, eles eram todos nossos amigos. Aqui era o nosso doce exílio”, explica Luiz Carlos Lacerda.

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Degustação de cachaças no primeiro dia da mostra (Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

As muitas Paraty

Nesse doce exílio, os cineastas puderam transformar Paraty das mais diversas maneiras, tornando a cidade em Mata Atlântica inexplorada do Brasil colônia e até um futuro distópico. Não menos radicalmente, Bruno Barreto ancorou por lá e fez dela Ilhéus.

Eram meados dos anos 1980 e o Brasil já era bem diferente daquele que fez a primeira geração de cineastas irem filmar até Paraty. Quando gravou Gabriela, Cravo e Canela, em 1982, Barreto levou uma produção internacional para fotografar o casal Marcello Mastroianni e Sônia Braga pelas ruas da cidade. A história, inspirada no romance de Jorge Amado, ganhou toques mais do que picantes, mas a beleza de Sônia, o charme de Marcelo e o financiamento norte-americano da MGM garantiram que o filme não caísse mal na opinião pública nem no já combalido regime militar.

“Hoje é um dia muito especial para mim”, diz Bruno Barreto na abertura de sua fala após a exibição de Gabriela na Mostra de Cinema de Paraty, “porque é a primeira vez que assisto a esse filme e gosto.” Dono de 23 longas-metragens na carreira, entre eles Dona Flor e Seus Dois Maridos, outra adaptação de Jorge Amado com Sônia Braga no elenco, o cineasta não esconde que o fato do filme ter sido encomendado atrapalhou seu envolvimento: “Mais importante do que a história que você está contando é o porquê você está contando essa história.”

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

“Estou contando a história da Gabriela e Nacib para falar… sei lá, hoje seria sobre feminicídio. É até atual a história. Mas eu não sabia, não percebi, só fui descobrir o filme que eu queria fazer e por que queria contar aquela história no meio da filmagem, e aí já era tarde”, ele diz. O que ele encontrou nesse meio do caminho foi “o estilo e a música de Tom Jobim… queria que a música contasse muito da história.”

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Preâmbulo feito e mais simpático à sua obra, que está longe de ser de tão mal assim, Bruno conta que a decisão de gravar em Paraty também passou pela questão da preservação das construções do Centro Histórico. “A arquitetura colonial portuguesa é a mesma, e havia a possibilidade de gravar a cena mostrando a cidade em 360 graus, diferente de Ilhéus, que já estava muito descaracterizada.” O cineasta lembra, no entanto, que a produção de Gabriela pintou as fachadas das casas com tintas coloridas, imitando a cidade baiana, algo que hoje é completamente proibido por órgãos de patrimônio como o Iphan: “Mas devolvemos as casas ao branco ao final da produção”, ele garante.

Barreto conta também que encontrou “uma cidade habituada ao cinema”, o que facilitou a gravação das cenas externas. “Passam as pessoas de charrete, passam as crianças de carrinho, tem toda uma história de fundo para dar vida à cidade. Todos esses movimentos eram marcados, como uma coreografia. Os cavalos passam na hora certa, as crianças, e isso foi muito fácil de fazer, porque vários filmes já tinham sido rodados na cidade.”

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

O diretor também mostrou-se saudosista com a visita que fez à cidade para participar da Mostra, afirmando: “hoje eu estava andando com os meus amigos e fiquei pensando na vontade de voltar a filmar aqui. Essa cidade é mágica, muito cinematográfica. Ela é misteriosa e, ao mesmo tempo, pode ser solar ou pode ser sombria. Quando você olha para essa cidade, percebe que tem uma atmosfera, tem trilha sonora, e tudo dependendo da paisagem e do tempo. Tenho muita vontade de voltar a filmar aqui, sim.”

Sobre memórias e resgates

Quando chegou em Paraty, há 11 anos, o professor de sociologia Danilo Medeji não encontrou uma grande produção cinematográfica na cidade. Havia um cineclube que se reunia na sede do Iphan às quartas-feiras e na Casa da Cultura de Paraty aos finais de semana: “Havia uma cultura, sempre que possível, de passar filmes feitos na cidade. As pessoas que participaram desses filmes adoram se ver nas telas. Ali, percebi que Paraty tem esse cenário favorável não só para produzir, mas também para contemplar o cinema.”

No período em que o cineclube funcionava em Paraty, não havia cinema na cidade. A sala de cinema onde hoje fica o Cinema da Praça estava fechada há anos. O lugar era, inclusive, utilizado por Lacerda e outros cineastas como espaço para conferirem os copiões de seus filmes nos tempos do doce exílio. Em 2018, foi reinaugurado após uma reforma, que entregou-lhe tecnologia moderna e uma readequação de seus espaços de convivência.

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Havia, no entanto, a recuperação de uma produção televisiva muito importante capitaneada pela EcoTv, uma emissora local de caráter educativo e comunitário que operou principalmente durante a década de 1990 na região da Bacia da Ilha Grande, dirigida principalmente pelo ator e cineasta Maurice Capovilla.

“Foram encontradas mais de 2.500 fitas em VHS num galpão em Angra dos Reis. Surgiu um movimento e acabamos criando uma ONG com a finalidade de digitalizar esse acervo. Durante quatro anos a ONG recebeu recursos para o trabalho”, conta Medeji. “Infelizmente, o núcleo de mídia foi fechado depois do falecimento do Capovilla, em 2021, mas esse material foi todo digitalizado e está pronto para ser disponibilizado.”

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(Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Um dos cameramen da EcoTv era justamente Carlos Alberto, o Dinho: “A EcoTV foi outra nave espacial que pousou em Paraty, mas essa com um envolvimento diferente, que pousou e ficou na cidade.  E as pessoas participavam, podiam entrar na nave”, ele explica. “E então começaram a entender como funciona o mecanismo. Porque as pessoas não sabiam que existia edição. Então, começaram a aprender a falar pra câmera, entenderam que uma reportagem tem um minuto e meio, dois minutos, então começaram a pensar antes de sair falando.”

Quando conversamos, Dinho e Danilo Medeji aguardavam o resultado da Lei Paulo Gustavo, onde inscreveram um projeto que tenta retomar a Mostra de Realizadores de Audiovisual de Paraty, que pretende falar sobre filmes feitos por pessoas que moram e vivem em Paraty.

Atual coordenadora da Casa da Cultura de Paraty, Cristina Maseda era Secretária de Cultura da cidade e foi responsável pelo projeto de reconstrução do prédio que tornou-se o Cinema da Praça. Ela reflete sobre o sucesso da Mostra, que levou cerca de mil espectadores às dez sessões do final de semana: “O resultado da Mostra de Cinema de Paraty superou todas as expectativas que tínhamos. O mais importante é que o evento possibilitou que a comunidade se reunisse, se revisse na tela e revivesse as nossas memórias coletivas. Isso é muito importante para a valorização da identidade cultural de Paraty. Além disso, trazer os diretores e as atrizes é poder compartilhar histórias do cinema brasileiro e projetar o futuro, despertando o desejo de cineastas voltarem a filmar por aqui.”

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Show de Raphael Moreira
e degustação de cachaças no primeiro dia da mostra (Mostra de Cinema de Paraty/divulgação)

Reunidos, os filmes da Mostra de Cinema de Paraty revelaram um momento de frescor de ideias e temáticas que serviu de pontapé inicial para grande parte da linguagem cinematográfica brasileira. Poder encontrar com os cineastas que realizaram filmes tão prestigiados e importantes para nosso cânone e vê-los assistindo suas obras mais de 50 anos depois de lançadas no lugar onde elas de fato foram feitas é compreender em plenitude a ideia da preservação das memórias e dos locais, e não apenas das obras feitas a partir delas ou deles, para que ainda haja algum tipo de aura, afinal.

A Bravo! agradece à Casa de Cultura de Paraty pelo convite de parceria para a Mostra de Cinema de Paraty de 2023.

A Mostra de Cinema de Paraty, realizada pela Casa da Cultura, é uma expansão da exposição Para uma história cultural de Paraty: 1945-2019, patrocinada pela Petrobras por meio do Programa Petrobras Cultural.

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