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Kleber Mendonça Filho de volta ao passado

Do cineasta recifense, documentário "Retratos Fantasmas" mostra a relação entre o cinema, sua antiga casa e sua cidade natal

Por Humberto Maruchel
14 ago 2023, 10h37
Cena do filme "Retratos Fantasmas" de Kleber Mendonça.
 (Cine Veneza/arquivo)
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Se você quer provocar Kleber Mendonça Filho, assista a seus filmes em etapas e, é claro, conte isso a ele. Foi isso que fiz depois ver em primeira mão seu mais recente longa-metragem, Retratos Fantasmas, um documentário biográfico que mergulha na longa e afetuosa relação do cineasta com o cinema, sua cidade natal, Recife, seu antigo apartamento e sua mãe, a historiadora Joselice. Uma obra criada especialmente para ser apreciada nas telas do cinema, que fez sua estreia oficial no Brasil durante o Festival de Gramado neste mês.

O DIretor Kleber Mendonça Filho
(Victor Juca/arquivo)

Retratos Fantasmas pode ser considerado o primeiro filme feito por Kleber, pois traz fragmentos que registram momentos de sua juventude no apartamento 102 do edifício Pioneiro, no bairro de Setúbal. “Uma construção sólida e discreta”, como ele mesmo diz durante a narrativa. Aos 10 anos, o cineasta se mudou com sua família para esse apartamento, e é de lá que guarda as primeiras imagens que moldaram sua história. A jornada que Kleber nos conduz é uma viagem de fora para dentro, desvendando não apenas a estética e arquitetura do apartamento, mas também as transformações urbanas e sociais, bem como a decadência dos grandes cinemas da cidade. Tudo isso, para ele, está interligado.

Cenas do filme
(Fotografia: João Carlos Lacerda/arquivo | Cinema São Luiz/arquivo)

Esse espaço, adquirido pela mãe após a separação do marido, significou um novo começo para Joselice. E não apenas isso, serviu como cenário para filmes como Recife Frio (2009) e Som ao Redor (2012). Enquanto nos conta a história de sua família, cenas dos jovens brincando pela casa vão se desenrolando pelos antigos cômodos. O documentário nos leva a pensar sobre o quanto Kleber teve a sorte de criar tais registros em vídeo desde tão cedo. Mas, na verdade, isso pode ser explicado por uma teoria do artista, segundo a qual toda família possui um cineasta amador, seja um tio ou prima, que estava sempre com uma câmera na mão, capturando visitas desprevenidas e sabendo exatamente onde as velhas fitas e fotos estavam guardadas. Parece, de fato, ser uma realidade comum a muitos lares.

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“Esse filme contou com muitos arquivos, de muita gente que não é cineasta, de muitas famílias. Vale lembrar que as famílias são grandes arquivos brasileiros”, conta Kleber. Ele acredita que é possível reconstituir a memória de uma cidade a partir das diferentes imagens de famílias, das cenas do cotidiano capturadas pelos abençoados parentes que fazem as vezes de arquivistas. “É possível montar um álbum de família da cidade, composto de imagens de muitos ângulos diferentes da mesma cidade. Cada foto é de um ano, de uma estética. Tem uma foto tirada com uma câmera muito sofisticada, outra com uma câmera muito barata, outra em preto e branco. Uma traz a imagem de um aniversário, a outra de uma pesquisa que a pessoa estava fazendo um retrato social da cidade em 1964. É muito fascinante trabalhar com arquivos porque você encontra o que estava procurando ou você não encontra o que estava procurando, mas encontra coisas que nem sabia que estava procurando. Foi assim que o filme foi constituído.”

Kleber viveu grande parte de sua vida nesse apartamento, saindo somente em 2017, pouco após o lançamento do filme Aquarius. Desde então, com aquela despedida, o documentário Retratos Fantasmas começou a amadurecer. Naquele local, fez seus primeiros filmes, foram ao menos 10 filmados ali, por inspiração de sua mãe. Para ele, uma obra cinematográfica não amadurece porque alguém quer ou está seguindo um cronograma, mas sim porque eventos inesperados influenciam esse processo.

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Cenas do filme
Inauguração do Cine Veneza / Bilheteria (Kleber Mendonça/arquivo)

O resgate dos arquivos, além de ter um aspecto emocional ao revisitar lembranças da mãe e outros amigos valiosos, também trouxe lembranças do antigo Cine Art Palácio, um dos mais esplendorosos cinemas do Recife, que há muito tempo foi aposentado. Essas imagens fizeram com que ele recordasse um amigo da adolescência, Alexandre Moura, um projecionista de cinema, a inspiração para sua paixão pelo cinema. “Muito desse material, de 30 anos atrás, era em torno do seu Alexandre, uma das melhores pessoas que tive a sorte de conhecer na vida. Boa parte do meu dia, eu passava com ele e com o Kleber de 1991, muito mais jovem, frágil e puro emocionalmente. Não foi uma experiência sofrida, mas algo muito forte no sentido de você se dar conta de como o tempo passa. Hoje estou nos meus 50 anos”, lembra. “Acho que o tempo foi muito generoso com esse material.”

Embora Retratos Fantasmas seja, sem dúvida, uma obra biográfica, Kleber destaca que todos os seus filmes, mesmo os de ficção, possuem traços e inspirações de sua própria história e de sua amada Recife. “Acho que nunca fiz um filme onde meu espectador não conseguisse associar a minha participação. Aquarius é, de certa forma, um filme sobre minha mãe, mas não é ela, é Sônia Braga, é uma coisa muito confusa. Retratos Fantasmas tem minha voz, tem minha casa, então é, assumidamente, mais pessoal.”

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“É possível montar um álbum de família da cidade, composto de imagens de muitos ângulos diferentes da mesma cidade. Cada foto é de um ano, de uma estética. Tem uma foto tirada com uma câmera muito sofisticada, outra com uma câmera muito barata, outra em preto e branco. Uma traz a imagem de um aniversário, a outra de uma pesquisa que a pessoa estava fazendo um retrato social da cidade em 1964″

Kleber Mendonça Filho

O personagem central do documentário, porém, não é o jovem Kleber, e sim os cinemas do centro de Recife. Muitos deles já não existem mais, e o encerramento de suas atividades não se deve à pandemia ou ao advento do streaming, mas sim ao crescimento urbano, prioridades e investimentos. O que vemos acontecer atualmente com esvaziamento dos cinemas já foi uma preocupação de tempos atrás, ele comenta. “A ideia de ir ao cinema passa por várias alterações. Cada alteração do sistema provoca uma atualização nos números de salas. Quando você vê uma sala fechando, isso gera até mesmo um efeito emocional. Mas essas alterações acontecem desde os anos 1950. Antes da televisão, o cinema tinha um monopólio da imagem. Quando chega a televisão, e ela se torna mais popular, isso meio que corta um pouco o barato do cinema.”

Cena do filme
(Fotografia: Wilson Carneiro da Cunha/arquivo)
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Apesar de não ter problema algum com o streaming e de acreditar na adaptação dos filmes para diferentes formatos, ele defende que certas obras perdem valor quando privadas da oportunidade de serem exibidas em uma grande tela. Retratos Fantasmas é uma dessas. “Ele foi feito para ser um momento constante de 93 minutos. Eu sei que quando ele for para televisão ou para streaming, as pessoas irão parar, vão olhar o Instagram, tudo isso faz parte da vida moderna, mas ele foi feito para começar com [a música de] Tom Zé e terminar com imagens em Super 8 sobre os créditos. Esse é o pequeno controle que posso ter sobre o filme.”

Cena do filme
(Cinemascópio/arquivo)
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