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Karim Aïnouz, uma viagem e dois filmes

"Marinheiro das Montanhas" e “Nardjes A.”, lançados em setembro, são resultado da viagem que o cineasta fez à Argélia em busca de suas origens familiares

Por Humberto Maruchel
28 set 2023, 11h46
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 (Karim Aïnouz/reprodução)
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Há um momento especial no trabalho de um cineasta quando ele filma outra pessoa. São apenas alguns segundos: o sujeito retratado aguarda enquanto o diretor ajusta a sua câmera. Constrangido, ele não sabe bem o que deve fazer ou como agir ou para onde olhar. Do resultado, que ainda carece de interpretação, podem-se extrair diversas emoções: melancolia, nostalgia ou até alegria. É esse instante de silêncio que define e permeia boa parte do novo documentário de Karim Aïnouz, Marinheiro das Montanhas, que estreou em 28 de setembro nos cinemas.

O filme é um diário da viagem que Karim realizou em 2019 à Argélia, o país de nascimento de seu pai, Majid Aïnouz. Nele, o cineasta se empenha em aprofundar o entendimento sobre seu próprio nome, que é tão comum na Argélia, e também investiga as origens de sua família, colocando uma pitada de fabulação e navegando constantemente pelos limites da ficção.

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(Karim Aïnouz/reprodução)

A história começa no navio que parte de Marselha, na França. Sem planos definidos, ele caminha pelas ruas de Argel acompanhado de um fotógrafo. A partir dessas andanças, emergem encontros com desconhecidos, retratos e cenas da vida cotidiana, mostrando um andarilho que oscila entre a sensação de pertencimento e um total deslocamento. As imagens de silêncio se cruzam com lembranças da infância. “É muito maluco, tenho um pai que conheci aos 20 anos, que vem de um país emancipado, mas sobre o qual ele nunca me falou nada”, afirma Karim, em entrevista à Bravo!. “São 54 anos pensando nisso”, ele declara no filme.

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Karim desembarcou no país dizendo às autoridades que se tratava de um jornalista indo para Argel e Cabília, querendo fazer uma reportagem para televisão brasileira. Ao dizer seu nome, ele se depara com uma curiosa compreensão: “É a primeira vez que não preciso soletrar”. Em Argel, portando a compacta filmadora Super 8, ele é confundido com um turista curioso, estratégia que facilitou o processo de gravação. “O país tem absoluto controle sobre as imagens que se produzem ali. Eu não podia abrir uma câmera sem passar por um instrumento turístico. Quando você faz esse tipo de filmagem, é preciso ir até a delegacia para pedir autorização para gravar em determinado bairro.”

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(Karim Aïnouz/reprodução)
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Karim não tinha muitas pretensões em relação ao filme. A narrativa foi sendo moldada gradualmente na pós-produção, mas a qualidade é tão intimista que nos faz crer que nela tudo é intencional. Muito pouco foi planejado e até mesmo o conceito foi descoberto num momento tardio. Perante tantas incertezas, surpreende não apenas que ele tenha conseguido concluir a obra, mas também que o resultado seja um de seus melhores filmes.

“Achava que faria essa viagem com meu pai e que ele me ajudaria a desvendar o país dele, mas não foi isso que aconteceu. Comecei a fazer a viagem sozinho, mas sem ter para quem contar. Ela tinha uma estrutura cronológica apenas, mas não dramatúrgica.”

“Na montagem, percebi que o filme corria o risco de se tornar monótono e que as pessoas não entenderiam muito das imagens captadas”, entrega. A solução foi transformar o roteiro em uma espécie de carta dirigida à sua mãe, Iracema, que faleceu em 2015. “Daqui a 20 horas, a Argélia vai deixar de ser um ponto cego na minha cabeça, e vai passar a ter cheiro, cor e carne. E você não vai estar do meu lado para ver o que é esse lugar que nos assombrou a vida toda”, diz o diretor na abertura do documentário.

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(Karim Aïnouz/reprodução)

As paisagens e até mesmo a trajetória de seu pai Majid Aïnouz são comentadas sob a perspectiva do relacionamento do casal – que não durou muito – o que confere à obra um tom mais melancólico. Iracema, uma bióloga brasileira, ganhou uma bolsa para estudar em Washington, nos Estados Unidos. E numa saída com amigos numa noite de boliche, ela conhece Majid, que havia deixado Cabília para estudar engenharia nos EUA. Ele foi embora da Argélia, ameaçado de morte, por lutar pela independência do país.

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Na década de 1960, a ditadura se desenhava no Brasil, e na Argélia, o povo celebrava a independência recém-conquistada. Em 1963, o casal decide viver junto no Colorado. Alguns anos depois, Iracema volta para seu país de origem, grávida, e Majid, parte para Argélia, que se encontrava num momento de paz. A promessa era de que o pai de Karim buscaria a mãe para viver no país do Norte da África, o que nunca aconteceu. O cineasta foi criado pela mãe e pela avó materna, como tantas outras crianças brasileiras. O romance permaneceu por muito tempo como um quebra-cabeça para Karim, que, quando pequeno, perguntou para a mãe sobre a história dos dois, escutou de Iracema a definição de um “amor entre a indígena e o português colonizador” como resposta.

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(Karim Aïnouz/reprodução)

“Achava que faria essa viagem com meu pai e que ele me ajudaria a desvendar o país dele, mas não foi isso que aconteceu. Comecei a fazer a viagem sozinho, mas sem ter para quem contar. Ela tinha uma estrutura cronológica apenas, mas não dramatúrgica. Então eu trouxe os personagens: meu pai e minha mãe”, explica.

“Meus pais não teriam se encontrado se não houvesse uma Guerra pela independência na Argélia. E entendi que a relação deles era extremamente subversiva: um homem de uma tribo argelina que encontrou com uma mulher emancipada, cearense, cientista, nos EUA, em 1960. Tinha algo que me parecia muito próximo de uma revolução.”

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(Bob Wolfenson/divulgação)
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Para se aprofundar no estilo de linguagem em que estava se aventurando, Karim decidiu investigar filmes de tradição autobiográfica, como Notícias de Casa (1977), de Chantal Akerman, e Sans Soleil (1983), de Chris Marker. Ele também se inspirou em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010), de autoria própria. “Me baseei muito em filmes de estrada, no cinema de diário criado, principalmente nos EUA, na década de 1960, com a popularização da câmera Super 8. O meu filme existe a partir desses experimentos.” Religiosamente, ao anoitecer, Karim favia um áudio-diário com impressões e acontecimentos que lhe marcaram durante o dia. “Tem um caráter trágico de eu fazer essa viagem na meia-idade e sozinho, trágico por fazê-la apenas agora.” Em Cabília, ele tem um encontro familiar com outro Karim Aïnouz e acaba conhecendo familiares distantes. “Ele é o filho que nasceu no estrangeiro”, diz um dos homens no filme.

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(Karim Aïnouz/reprodução)

A obra revela o perfil multicultural do cineasta, que transcende as diversas origens de seus pais e que está presente como um estilo de vida nômade. Nascido em Fortaleza, ele passou vários anos estudando nos Estados Unidos antes de se mudar para a França, onde sofreu muito preconceito pela ascendência árabe e, finalmente, estabeleceu residência na Alemanha, onde reside atualmente com o seu esposo, Mário Brandão. Enquanto isso, a Argélia permaneceu como um lugar mítico em sua imaginação, a ponto de nunca ter sequer pesquisado sobre o país no Google antes de empreender essa viagem. Ele chegou a declarar que Marinheiro das Montanhas estava entre os cinco filmes que precisava fazer antes de morrer.

No fim do processo de montagem, Karim teve outra revelação, a de que estava diante de dois fenômenos paralelos: o romance improvável de seus pais e a revolução na Argélia. “Comecei a entender que esse filme era uma desculpa para me educar sobre a Guerra de Independência. A grande descoberta na montagem era entender que havia uma intersecção gigantesca entre a história íntima e a história geral.”

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(Marinheiro da Montanha/divulgação)
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O desafio a seguir era encontrar uma forma convincente de entrelaçar as duas narrativas. “Meus pais não teriam se encontrado se não houvesse uma Guerra pela independência na Argélia. E entendi que a relação deles era extremamente subversiva: um homem de uma tribo argelina que encontrou com uma mulher emancipada, cearense, cientista, nos EUA, em 1960. Tinha algo que me parecia muito próximo de uma revolução.”

 

Nardjes A e o surto de produtividade de Karim

Foi a partir dessa revelação que, uma viagem e um documentário acabaram se desdobrando em dois projetos complementares e o longa Nardjes A. adquiriu vida própria e, inclusive, estreou nos cinemas brasileiros na mesma data de Marinheiro das Montanhas. Mas desta vez, a lente do diretor acompanhou os protestos de uma ativista contra o então presidente Abdelaziz Bouteflika, que, em 2019, buscava um quinto mandato.

Enquanto revisitava o passado em sua jornada autobiográfica, Karim se deparou com os levantes populares atuais no país, que não só apontavam para as problemáticas do presente, mas também para o desejo de outro futuro. Ele ficou impressionado com a forte liderança feminina nas ruas, algo que não parecia ser tão comum enquanto filmava Marinheiro das Montanhas: “As manifestações eram extremamente populares e lideradas por mulheres. A representação da mulher muçulmana muitas vezes é patriarcal, então eu queria apresentar o retrato de uma mulher moderna neste segundo filme”.

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(Karim Aïnouz/reprodução)

Devido à restrição da liberdade de imprensa, Karim enfrentou muitos desafios para realizar o segundo projeto. Durante as filmagens, chegou a ser retirado de uma manifestação e ameaçado de expulsão do país pelo fato de portar uma câmera. Uma maneira de passar despercebido foi gravar com seu smartphone, já que todos os manifestantes também o faziam.

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Ele precisava de alguém que não se sentisse intimidado pela câmera. Foi assim que conheceu a atriz Nardjes por meio da indicação de um amigo. A atriz-ativista concordou em ser filmada, mas pediu para não atuar. “Acredito que fiz este filme porque ele capturava algo que eu sonhava que acontecesse aqui naquele momento, com o povo tomando as ruas em 2019”, recorda o diretor.

“Preciso ter pelo menos 10 projetos em mãos, porque sei que oito deles podem não se concretizar”

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(Maria Lobo/divulgação)

Karim vive um surto de produtividade no momento. Além dos dois longas, ele está finalizando as filmagens de Motel Destino, no Ceará, e se preparando para gravar seu segundo longa internacional, Rosebushpruning. Recentemente, estreou Firebrand, seu primeiro filme em língua inglesa, no Festival de Cannes; obra que conta com Jude Law e Alicia Vikander no elenco. Este último filme, entretanto, foi impactado pela greve dos roteiristas e atores em Hollywood. É com tristeza que comenta sobre ele, diante da incerteza em relação à sua divulgação e lançamento. Ele relata ter sido profundamente afetado pela paralisação nos EUA. Sua sorte, ele afirma, é ser um “cineasta global”, com projetos tanto no Brasil quanto no exterior.

A alta produtividade do diretor, que quase não para, está menos relacionada a uma visão romântica e mais próxima da dura necessidade de sobrevivência. “Não tenho outra fonte de renda além do cinema. Minha subsistência depende inteiramente dos filmes que faço. É por isso que preciso ter pelo menos 10 projetos em mãos, porque sei que oito deles podem não se concretizar”, finaliza.

Cartaz do filme Nardjes A
(NARDJES A/divulgação)

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