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Juliana Rojas amplia debate da migração em “Cidade; Campo”

Elogiado pela crítica e premiado nos festivais de Berlim e Gramado, filme estreia em 29 de agosto nos cinemas brasileiros; Leia entrevista exclusiva

Por Humberto Maruchel
31 ago 2024, 09h00
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Cena do filme "Cidade:Campo" (Alice Drummond/divulgação)
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Um cineasta é composto de muitas memórias e histórias, algumas reais e outras completamente inventadas. As inspirações nem sempre seguem uma lógica coerente; elas navegam por temas e lembranças diversas e, por vezes, distantes. Juliana Rojas, nascida em Campinas, exemplifica como o cinema pode ser tecido a partir de uma colcha de retalhos de referências e influências variadas. Suas obras transitam entre o terror, a fantasia e até mesmo os desenhos animados da Disney, um universo presente na infância de muitos brasileiros.

Neste ano, seu último longa, “Cidade; Campo”, tem sido destaque nos festivais internacionais de cinema. Juliana conquistou o Urso de Ouro de Melhor Direção no último Festival de Berlim. Em reconhecimento à sua trajetória e ao sucesso do filme, ela foi convidada a integrar o júri do Queer Palm, uma premiação paralela no Festival de Cannes voltada para produções com temática LGBTQIAPN+, ao lado do diretor belga Lukas Dhont, presidente do júri; da atriz e drag queen francesa Hugo Bardin/Paloma; do jornalista britânico-palestino Jad Salfiti; e da diretora e atriz francesa Sophie Letourneur.

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Cena do filme “Cidade;Campo” (Juliana-Roja/divulgação)

O reconhecimento também chegou em seu país natal. “Cidade; Campo”, que estreou recentemente no Festival de Gramado, foi agraciado com dois Kikitos, de Melhor Filme pelo Júri da Crítica e Melhor Atriz para Fernanda Vianna. “Cidade; Campo” experimenta diversos gêneros, às vezes se assemelhando a um documentário, outras vezes a um drama com toques de realismo fantástico.

Dividido em duas histórias distintas, o longa inicialmente acompanha Joana (Fernanda Vianna), uma trabalhadora rural forçada a migrar após o rompimento de uma barragem de dejetos de mineração em sua cidade, uma clara referência às tragédias ambientais em Mariana e Brumadinho. Em São Paulo, ela passa a viver com a irmã Tânia e o sobrinho-neto Jaime, enfrentando desafios para sobreviver e prosperar, enquanto lida com o trauma do passado.

Na segunda parte, o casal Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) faz o movimento oposto. Elas se mudam da cidade para uma fazenda que pertencia ao pai recém-falecido de Flávia. Na nova moradia, Flávia descobre segredos sobre o pai e começa a entender partes de sua própria história, enquanto tenta se adaptar à vida no campo. O filme tem estreia prevista para 29 de agosto nos cinemas.

Bravo! conversou com Juliana na véspera de sua viagem para Gramado e pôde conhecer mais sobre as tramas do processo artístico que culminou em “Cidade; Campo”. Leia a conversa:

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Em “Cidade; Campo” você escolheu apresentar duas histórias que não necessariamente se conectam diretamente, como dois contos, mas que criam uma relação por meio de pontos em comum. Como você chegou a esse formato?

A motivação para fazer esse filme era tentar falar sobre um sentimento de não pertencimento, de tentar achar seu lugar no mundo quando se sai de uma origem para construir a vida em outro lugar. Queria abordar esse sentimento de pessoas que migram, algo que tem a ver com a minha história pessoal, já que meus pais são de origem rural e se mudaram para a cidade. Eu percebia muito isso, principalmente no meu pai: uma certa melancolia de não pertencer mais ao universo rural, mas ainda sentir saudade e um certo desconforto com a realidade urbana, sem estar totalmente conectado. Isso também acontecia com alguns primos que tinham esse conflito.

Sempre pensei que essa história precisava ter as duas perspectivas: de quem migra do campo para a cidade e vice-versa. A estrutura sempre foi planejada dessa forma, e também sempre quis que fosse uma história contada em sequência, sem narrativas paralelas, em que os personagens não interagissem. O sentido do filme seria criado por essa oposição de histórias, por certas rimas e elementos em comum ou em oposição que existem nas duas partes. Foi isso que me guiou.

Você partiu de alguma história real?

Fui buscar tanto inspirações reais quanto elementos pessoais para construir essa história. A primeira parte conta a história de Joana, que, após um desastre causado por um crime ambiental, é forçada a se mudar para São Paulo e a reconstruir sua vida. Isso tem a ver com o que aconteceu em Brumadinho e Mariana, crimes ambientais que me tocaram muito, especialmente porque minha família é de Minas Gerais. Embora não seja dessa região, são lugares que conheço. Os relatos me impactaram profundamente, não só pelo desastre em si, com a perda de familiares e o trauma, mas também pela destruição das comunidades. As pessoas perderam seu lugar de origem, e a questão é como se segue a vida depois disso.

Também busquei abordar outros temas presentes em meus filmes, como a precarização do trabalho, relações de classe e relações familiares entre mãe e filho, além do processo de luto. A segunda parte trata de uma personagem lidando com o luto pela perda do pai, uma relação que não foi totalmente resolvida, já que Flávia estava um pouco distante dele. O casal Flávia e Mara tenta encontrar uma possibilidade de vida em outro lugar, lidando com uma realidade diferente do que imaginaram, enquanto Flávia processa o luto. Há também elementos pessoais, pois meu pai faleceu em 2014, e escrever o roteiro de “Cidade; Campo” me ajudou a processar o luto e a entender minha relação com ele e com a ancestralidade por parte da família dele, sobre a qual sei muito pouco. Essa parte se passa no interior do Mato Grosso do Sul, onde a família dele vivia. Pequenos elementos pessoais e subjetivos estão presentes no filme.

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Cena do filme “Cidade:Campo”, de Juliana Rojas (Alice Andrade Drummon/divulgação)

Quando você começou a imaginar o projeto?

Em 2011, acho que comecei a pensar nesse projeto, mas comecei a trabalhar mais intensamente nele por volta de 2014 ou 2015. Houve várias questões ao longo do tempo. Primeiro, filmei “As Boas Maneiras”, e depois retomei esse projeto, que foi contemplado pelo Fundo Setorial em 2018, um dos últimos recursos desse fundo antes da era Temer e Bolsonaro.

Agora, os recursos federais estão sendo retomados. Esse projeto também enfrentou a pandemia, com duas interrupções devido à Covid-19. Em 2020, estávamos começando a preparar o filme para filmagem, pois havíamos sido selecionados por um edital, além de outros fundos. Porém, com o início da pandemia, tivemos que interromper, ainda estávamos em um estágio muito preliminar, sem elenco definido e em preparação.

Em 2021, retomamos as atividades quando algumas produções começaram a filmar com protocolos de segurança. Filmamos a primeira parte do longa, que é a parte da cidade. Quando estávamos prontos para ir ao Mato Grosso do Sul, houve uma contaminação, e tivemos que interromper as filmagens. Conseguimos retomar apenas no início de 2022 e, então, filmamos o restante do longa e finalizamos o projeto, buscando recursos para a pós-produção. Foi um processo longo, e acho que o projeto foi se aprofundando; fui percebendo e entendendo melhor os elementos mais pessoais enquanto trabalhava nele.

Além disso, “Cidade; Campo” foi influenciado por ter sido feito durante a pandemia, um momento de muita incerteza e reflexão sobre vida e morte, e também sobre questões maiores, como o clima e nossa relação com a natureza, que são temas centrais na história.

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Havia a sensação de não saber quanto tempo essa situação duraria, uma incapacidade de enxergar o futuro. O contexto político do Brasil naquela época também contribuiu para essa sensação de incerteza, com tensões muito latentes. Tudo isso acabou sendo refletido no filme, que transmite certo sentimento de apocalipse climático e, ao mesmo tempo, as tensões políticas do período.

Nessa primeira parte de “Cidade;Campo”, você se debruça sobre a história de uma mulher que perdeu tudo por conta do rompimento de uma barragem. Houve alguma pesquisa sobre pessoas que viveram isso na pele?

Do ponto de vista do desastre de Mariana e Brumadinho, fiz muita pesquisa, lendo reportagens e depoimentos na época, além de ter lido livros posteriormente com relatos das pessoas que foram vítimas. O que mais me marcou nesses depoimentos foram pequenas coisas, como um casal que perdeu tudo e foi colocado em um quarto de hotel em Belo Horizonte, o que para eles era muito estranho. Além do trauma, havia a dificuldade de não ter a rotina que tinham no sítio, e os sons da cidade eram perturbadores. Foi essa parte mais subjetiva que eu quis retratar em “Cidade; Campo” .

Na questão dos trabalhos de aplicativo e dos profissionais de limpeza terceirizados, que é uma área muito precarizada, tive a consultoria da Andreia Pires, uma profissional que luta pelos direitos dos trabalhadores de limpeza. Além disso, tenho uma amiga que escreveu um livro chamado “A Precarização tem Rosto de Mulher” (Diana Assunção), que fala muito sobre sua relação com um movimento social envolvido em uma greve de trabalhadores de limpeza terceirizados na USP. Então, também houve uma pesquisa nesse universo.

Vou aproveitar essa oportunidade para comentar e perguntar sobre aspectos específicos do filme. Gostaria de explorar um pouco mais sobre o tema do “fim do mundo” que são mencionados em uma das histórias.

Há uma clara sugestão de um fim iminente, com elementos que indicam a aproximação de um corpo celeste e uma estética que cria uma atmosfera estranha e inquietante. A utilização de cores e a representação de manifestações climáticas contribuem para essa sensação de que algo grande está prestes a acontecer.

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“Cidade; Campo” parece refletir o que estamos vivendo atualmente, um momento em que o mundo enfrenta crises climáticas e sociais, muitas vezes ignoradas. Isso gera uma sensação de angústia ao observar os impactos na natureza e a crescente precarização do trabalho e da vida social, além da desumanização causada pela tecnologia e pelo capitalismo.

Antes de estrear no Brasil, “Cidade; Campo” passou por importantes festivais. Você foi premiada em Berlim. E finalmente estreou no país no Festival de Gramado. Como foram essas experiências?

Ele estreou no Festival de Berlim, na competição Encounters, que faz parte da seleção oficial. A estreia foi muito boa, com uma ótima recepção tanto do público quanto da crítica. Ganhamos o prêmio de Melhor Direção na Encounters, o que foi fantástico, um prêmio muito importante. Além disso, fomos um dos três filmes finalistas do The Teddy Award, que destaca filmes LGBT+. Foi muito gratificante receber esse reconhecimento.

Depois disso, o filme tem viajado por diversos festivais internacionais. Passou pelo Frameline (em São Francisco), que é um dos festivais LGBT+ mais importantes dos Estados Unidos e um dos mais antigos do mundo. Também foi exibido em vários lugares, como Cartagena, e será exibido agora em San Sebastián, na Espanha. “Cidade; Campo” está tendo uma carreira muito boa. Estou super curiosa [sobre como será a recepção no Brasil], porque é muito diferente quando o filme estreia no nosso país, trazendo outra perspectiva, já que há todo um universo de referências que são muito brasileiras.

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A diretora Juliana Rojas, membro do Juri do Festival de Cannes (Theo Lavagnoli/divulgação)

Como foi a experiência de participar do júri da Palma Queer em Cannes e quais foram os principais aprendizados?

Foi incrível porque tive a oportunidade de estar no festival, assistindo aos filmes da seleção, e me dedicando totalmente a isso. O grupo era muito interessante, e tivemos conversas enriquecedoras sobre cinema, o que sempre expande a nossa visão. Cada um tinha uma perspectiva diferente e enxergava aspectos específicos em cada produção. Isso foi muito valioso.

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A deliberação foi intensa, havia muitos bons filmes, mas alguns se destacavam claramente. O que prevíamos premiar era um dos meus favoritos, embora meu preferido não tenha sido escolhido no final, já que não houve consenso no júri. O que acabou ganhando, “3 quilômetros até o Fim do Mundo”, não sei se será traduzido dessa maneira, é um filme muito bonito e impactante, que também estava entre os que mais me tocaram. Fiquei bastante feliz em poder premiá-lo.

E que você tem sentido em relação a expectativa até mesmo interesse pelo cinema brasileiro lá fora?

Acredito que há um grande interesse pelo cinema brasileiro, e vejo que as pessoas estão felizes com o retorno de um volume maior de produções brasileiras. Tivemos um momento, após os dois períodos do governo Lula e o governo Dilma, em que se construiu uma estrutura de produção e difusão internacional do cinema muito boa e diversa, contemplando várias regiões. Isso gerou filmes muito interessantes e genuinamente brasileiros, que começaram a ocupar espaço nos festivais.

Durante o período Temer e Bolsonaro, houve um apagão no cinema, e a produção diminuiu bastante. Agora, o cinema está voltando, e percebo que há um interesse renovado dos festivais, que reconhecem o potencial do nosso cinema e estão ansiosos para conhecer e exibir esses novos filmes. Sinto uma grande receptividade e curiosidade em descobrir obras de diferentes lugares e realizadores.

Cidade; Campo” foi uma das poucas vezes em que vi uma cena de sexo que parecia ser real, sem aquela idealização que, muitas vezes, se assemelha à pornografia. Quais foram os cuidados tomados para filmá-la? Vocês contaram com a ajuda de uma coordenadora de intimidade?

Houve uma preparação corporal, não exatamente uma coreografia para a cena, mas uma preparação para criar a relação entre essas duas personagens ao longo de todo o processo de “Cidade; Campo” . Para a cena em si, trabalhei intensamente com a equipe de fotografia. A primeira parte foi feita com Cris Lyra, que não pôde continuar na segunda, mas tivemos muitas conversas sobre referências. Na segunda parte, a fotografia foi realizada por Alice Andrade Drummond. 

Nós quatro fizemos um ensaio no qual discutimos alguns quadros e elementos que eu gostaria de ter na sequência. Elas também propuseram suas ideias, e fotografamos alguns quadros durante esse ensaio, mostrando para elas o que estava sendo planejado. Esse processo foi muito colaborativo, tanto em relação ao que queríamos expressar com a cena, quanto ao sentimento que desejávamos transmitir e a forma como as imagens seriam construídas. Achei fundamental que elas se sentissem seguras e confiantes.

No dia da filmagem, deixamos no set apenas as mulheres da equipe, o que tornou o ambiente muito tranquilo, pois tudo já havia sido ensaiado, e elas estavam confiantes sobre o que estava sendo filmado. Acho que isso contribuiu para a sensação de conforto que se percebe na cena, pois as atrizes estavam envolvidas na construção da imagem e no entendimento do que se queria com ela. Queríamos evitar a reprodução de uma estética que viesse de um olhar masculino, mas, ao mesmo tempo, criar uma sequência bonita e sensual, mostrando que esses corpos, fora do padrão, também têm direito ao prazer.

A Mirella é uma atriz negra e gorda, e a diferença entre esses corpos, essa diversidade, precisava ser representada de maneira verdadeira na tela, algo que geralmente não é visto no cinema. Muitas vezes, esses corpos são relegados a estereótipos, e não têm o direito ao amor, ao prazer, e ao sexo. Por isso, discutimos muito sobre a importância dessa cena e como era essencial representá-la de forma humana e autêntica.

Juliana, tem alguma coisa que você gostaria de acrescentar que você acha que é importante pontuar sobre o filme ou sobre o processo de construção de “Cidade; Campo”?

Todo filme é muito importante, especialmente a relação com a equipe e como isso contribui para a construção de . Mas, nesse em particular, pelas dificuldades que enfrentamos e também por ser um projeto em que explorei coisas que ainda não havia feito, tanto em termos de linguagem, narrativa e temática, o diálogo com as equipes foi crucial. Isso vale especialmente para os departamentos de direção de arte, fotografia, montagem e som.

Gostaria de destacar o trabalho dessas pessoas: Juliana Lobo, que concebeu a direção de arte e foi responsável pela primeira parte do filme, e Daniela Aldrovandi, que assumiu a segunda parte. Houve um diálogo necessário entre elas para garantir a coesão do filme. Na fotografia, Cris Lyra contribuiu com a concepção estética, e quando Alice Andrade Drummond assumiu a segunda parte, houve uma troca de ideias para manter a consistência visual.

Na montagem, Cristina Amaral, uma figura importante no cinema brasileiro, trouxe uma percepção particular de tempo, que contribuiu imensamente para a linguagem do filme. Utilizamos muitas fusões e tipos de cortes que são bastante marcantes, e encontramos uma sintonia nesse desejo de construir a montagem dessa forma. No som, tanto a captação quanto o desenho de som, realizado por Tiago Bello, assim como a mixagem, foram essenciais, junto com a trilha sonora de Rita Zart.

Essa atmosfera única de “Cidade; Campo” não é algo que se constrói sozinho, mas sim através do trabalho conjunto de todas essas equipes, sempre em diálogo para alcançar essa coesão. Viva o nosso cinema!

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