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Conversa entre gerações

A atriz trans não-binária Nila e o ator baiano Lyu Árisson falam sobre a importância da inclusão de pessoas trans em produtos do audiovisual

Por Ágata Fidélis, reportagem; Lyu e Nila, entrevista
Atualizado em 23 fev 2024, 18h25 - Publicado em 16 fev 2024, 09h00

A atriz trans não-binária Nila se tornou conhecida do grande público ao protagonizar, entre 2018 e 2019, o primeiro beijo gay da novela Malhação – Vidas Brasileiras, produto clássico da Rede Globo, célebre por trazer visibilidade e lançar no mercado jovens talentos.

No período, a paraibana natural de João Pessoa já se posicionava como pessoa não-binária, mas ainda respondia por seu antigo nome masculino. Hoje, aos 24 anos, oficialmente sob o nome de Nila, acaba de gravar a terceira temporada da série De Volta aos 15, grande sucesso da Netflix, ao lado de nomes como Camila Queiroz, Klara Castanho, Maisa Silva, Alice Marcone e João Guilherme, onde tem se destacado ao dar vida a César/Camila, personagem que passa pelo processo de transição de gênero, ao mesmo tempo que, em paralelo, também vive a sua própria experiência de reconstrução de identidade.

Não muito antes disso, há 17 anos, o público brasileiro se apaixonava pela travesti Yolanda, personagem lapidada pelo ator baiano Lyu Árisson, em Ó pai, Ó, filme com direção de Monique Gardenberg, baseado em uma peça de Márcio Meirelles e com coordenação de trilha sonora de ninguém menos que Caetano Veloso. Entre nomes de peso como Dira Paes, Stênio Garcia, Lázaro Ramos e Wagner Moura, parte do sucesso da obra certamente se deve ao trabalho dos atores do Bando de Teatro Olodum, um coletivo teatral negro que luta por igualdade e pelas minorias.

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(O pai, ó/arquivo pessoal)

Além de ator, Lyu é coreógrafo e antes do sucesso nas telas, já havia rodado o mundo como bailarino do emblemático Balé Folclórico da Bahia, sob direção do grande mestre Zebrinha. Após despontar para o grande público em Ó pai, Ó, Lyu turbinou seu currículo com atuações em filmes como Serra Pelada, de Heitor Dália, Quincas Berro D’água e Os irmãos Freitas, ambos de Sérgio Machado, e em produções internacionais como Velozes e Furiosos 6, de Justin Lin, e Pacificado, de Paxton Winters. Atualmente o ator está em cartaz com Ó pai, Ó 2, novamente sob direção de Viviane Ferreira.

Fruto de uma geração onde eram raros os personagens na TV ou mesmo no cinema, que traziam em sua construção questões de gênero, Lyu rompeu, através de Yolanda, com diversos padrões e escancarou as portas para as próximas gerações. Aqui, o ator bate um papo com Nila, uma imagem representativa da geração Z no mercado de audiovisual, no sentido de autoexpressão, autoestima e identidade, uma vez que faz parte de uma primeira leva de atores que são completamente livres para serem quem são em um mercado historicamente voltado para pessoas binárias. Confira esse papo imperdível entre gerações:

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Lyu: Sua personagem Camila, na série “De Volta aos 15”, transiciona ao longo das três temporadas, enquanto na vida real você vivia o mesmo processo. Eu poderia dizer que algo parecido aconteceu comigo ao dar vida à Yolanda, minha querida personagem em “O Paí, Ó”. Sinto que muito de Yolanda vem de mim e com ela pude me autoconhecer, descobrir outras camadas de mim mesma. Depois dela tudo mudou em minha vida, inclusive a forma como me coloco no mundo. Poderia contar um pouco sobre como foi viver de forma escancarada esse processo e o quanto ver o público amando e apoiando a sua personagem te motivou e preparou para o seu processo de transição?
Nila:
Antes de tudo, é uma honra surreal estar tendo essa troca com você. Acho que você abriu muitas portas para nós, que estamos chegando agora no audiovisual. A Yolanda é uma personagem emblemática porque é a representação da travesti que o público reconhece no seu cotidiano, mas ao mesmo tempo não tem acesso às complexidades e humanidade dessas pessoas.

Acho incrível que todo esse carisma ganhou o grande público e hoje sua personagem faz parte do patrimônio do cinema nacional. É o pontapé para as narrativas mais complexas sobre pessoas trans e um esforço exemplar de reparação por colocar você, para interpretar esta personagem em uma época em que toda e qualquer representação no audiovisual se limitava ao trans-fake.

Eu também sinto isso em relação à forma que eu passei a me colocar no mundo. Poder estudar e entender esse processo desenvolvendo uma personagem foi muito interessante porque muitas vezes, a Camila estava vivendo em cena uma situação que mais tarde eu viveria na minha própria vida. Então, tive a chance de experimentar essa vivência antes de incorporá-la a mim mesma. E ver as pessoas amando e celebrando a minha personagem era como se eu enxergasse uma bandeira sinalizando que o caminho estava se abrindo para mim, e ao ser o veículo dessa história, eu também via que era eu quem estava abrindo novos caminhos para pessoas como nós.

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Acho isso muito lindo no audiovisual. Toda vez que o cinema se propõe a contar uma história como a nossa, desperta nas outras pessoas a fé de que sim, é possível ser quem elas realmente são. Elas passam a se enxergar sabendo que a sociedade tem uma referência a qual recorrer e isso é reconhecimento social.

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(João Dias/divulgação)

Você é uma pessoa trans não binária de 24 anos, uma geração depois de Yolanda, que era considerada uma travesti, único termo possível para ela naquele momento. Poderia explicar para o público o que é uma trans não-binária e como você se encontrou nessa nomenclatura?
Acho que encontrei, sim, uma janela de reconhecimento na nomenclatura trans não-binária, mas questiono se, por me associar à feminilidade, isso inevitavelmente me contempla enquanto mulher. Uma pessoa que não se reconhece na cisgeneridade e, portanto, não se entende nem enquanto homem, nem enquanto mulher, pode encontrar espaço de representação ao se declarar enquanto uma pessoa trans não-binária. É uma identidade que busca alternativas de se colocar no mundo sem se associar aos papéis de gênero da masculinidade ou da feminilidade, se relacionando de forma a repelir ou coincidir essas performances de gênero e se expressando socialmente de forma única.

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Mais e mais vezes eu venho questionado, investigado e tentado entender como o dispositivo da não-binariedade acontece e tenho percebido que se trata de uma identidade cuja a performance sempre dependerá de quem a desempenha. Até porque, como fugir da feminilidade e da masculinidade se estes fatores estão inerentes à nossa socialização? A impressão que eu tenho é que, enquanto uma pessoa trans não-binária, estarei em transição pelo resto da minha vida.

Yolanda foi construída com muito cuidado por Monique Gardenberg e eu. Ela é uma personagem que rompeu muitas barreiras e se instalou no imaginário do público, que passou a amá-la. Mas a verdade é que, enquanto muitos amam a personagem na tela, o mundo segue sendo um lugar infértil para pessoas como ela na vida real.

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(O pai, ó/reprodução)

Estamos em um momento de transição importante. Muita coisa mudou, mas ao mesmo tempo, ainda falta muito. Como você enxerga o mundo atual para pessoas como nós?
Eu diria que nós também crescemos nessa infertilidade porque, infelizmente, muito da nossa identidade está embasada nas opressões que vivemos ao longo da vida. O que é muito triste, porque ninguém deveria se entender ser humano a partir do sofrimento. Acredito que estamos visivelmente num momento de inclusão, mas que segue sendo capitaneado por pessoas cisgêneros e que, portanto, não entendem as demandas que realmente importam para a nossa comunidade. Como construir um filme com uma personagem como a nossa sem a nossa participação ativa nestas produções?

Essa é a questão que coloca em xeque o assunto da representatividade e dá lugar ao tokenismo – um conceito social que ilustra a prática de sub-representação de minorias sociais a fim de ganhar e se promover a partir das pautas daquele grupo sem dar o devido retorno à comunidade. Ilustrando no audiovisual, é quando optam por colocar uma personagem trans num filme mas não há nenhuma outra pessoa trans participando da sua concepção atrás das câmeras. A produção se promove e lucra com a representação daquela pessoa trans, mas acaba por entregar uma narrativa superficial e, por vezes, restrita aos próprios conflitos de gênero e sem qualquer humanidade.

Eu acho que para que o mundo e, por consequência, o mercado nos inclua dignamente, é preciso estabelecer o entendimento de que nós devemos ser as porta-vozes das nossas próprias narrativas. E isso não quer dizer que elas pertencem apenas a nós mesmas, eu quero que mais e mais pessoas possam contar nossas histórias – afinal, elas são muito boas! Mas elas precisam ser a partir da nossa visão de mundo e das nossas próprias experiências, porque é isso o que nos torna tão humanas, tão complexas e tão interessantes.

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(Lyu Arisson/reprodução)

O que você gostaria de deixar de mensagem para o público a respeito do universo trans?
Que o público torne visível as nossas necessidades, reivindicações e direitos, mas não se esqueça de tornar as nossas vitórias e as nossas vidas visíveis também. E isso é um recado para nós, pessoas trans – porque estamos em um momento decisivo e precisamos nos apoiar ainda mais – mas, principalmente, para as pessoas cisgênero. Porque são elas que detém boa parte dos meios de produção e são parte fundamental para o nosso avanço social. Eu e você, Lyu, podemos ocupar esse lugar de visibilidade e influência, mas se estamos sozinhas, é posto um limite até onde podemos agir. A gente precisa que a nossa inclusão e nosso avanço de direitos seja uma ação conjunta da sociedade porque é muito injusto depositar uma comunidade inteira nas mãos de nós que, mal ou bem, também estamos tentando sobreviver nesse meio.

Sendo assim, desejo que o discurso das pessoas aliadas saia do meio virtual e ganhe a participação socialmente efetiva. Que elas nos indiquem para trabalhos, promovam bolsas de estudo em seus cursos, se informem mais sobre as nossas pautas, nos abracem e nos beijem em público e se esforcem para que mais e mais pessoas nos enxerguem não como anomalias, mas como seres humanos tentando viver a melhor vida possível.

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