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Flautista Léa Freire expõe como o machismo limitou sua carreira na música

A instrumentista, nome fundamental do jazz e da música clássica nacional, tem sua trajetória resgatada no documentário “A Música Natureza de Léa Freire”

Por Beatriz Lourenço
22 jul 2024, 09h00
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 (Caroline Bittencourt/divulgação)
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Coragem, determinação e resiliência definem a trajetória de Léa Freire. A instrumentista se apaixonou pela música desde cedo – começou com a flauta doce e logo passou para o violão, piano e saxofone. Com um vasto aprendizado sobre melodias clássicas e populares, ela inventou uma assinatura musical própria, sempre experimentando novos sons e harmonias. “Para o erudito, sou popular. Para o popular, sou erudito. Para o choro, sou jazz. Para o jazz sou do choro”, analisa em conversa com a Bravo!. 

Apesar de ser reconhecida internacionalmente, a artista não ganhou reconhecimento no Brasil. Mas o cineasta Lucas Weglinski decidiu mudar o rumo dessa história com o documentário “A Música Natureza de Léa Freire”, que estreia nos cinemas em 18 de julho. O filme conta com depoimentos de personagens essenciais da música brasileira, como Alaíde Costa, Amilton Godoy e Jane Lenoir

Este documentário tem várias missões históricas. A primeira é apresentar uma compositora extraordinária e sua obra tão diversa. A segunda é lançar questões sobre o porquê desse apagamento ou silenciamento e como ele se mostra sintoma da nossa sociedade”, explica Weglinski à Bravo!. “E, por último, criar um paralelo entre Cultura e Educação que, para mim, são indissociáveis e deixar uma última pergunta: Qual nosso projeto coletivo de País? O que criminaliza ou o que educa?”, completa.

Além de contar a vida, os medos e os sonhos de Léa, o longa também faz refletir sobre a visibilidade das mulheres no cenário cultural. Isso porque ela, que despontou em um ambiente majoritariamente masculino, teve que pensar em mecanismos para se desviar do machismo cotidiano.

“Todas as vezes que eu chegava em algum lugar, era sempre um desafio: o pessoal perguntava sempre se eu era namorada de alguém. E aí, quando eu começava a tocar, falavam que eu tocava que nem homem“, recorda-se. “Em alguns lugares, os homens ficavam encarando meu corpo enquanto eu tocava.”

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(Léa Freire/arquivo pessoal)

Hoje, ela atua em universidades públicas, no projeto Guri – um programa de educação voltado para a formação musical de crianças, pré-adolescentes e adolescentes – e tem o selo Maritaca Discos. Esse, por sua vez, já gravou quase 60 álbuns, incluindo os de nomes como Arismar do Espírito Santo, Banda Mantiqueira e Nailor Proveta. Abaixo, confira a entrevista completa com Léa Freire:

Quando você decidiu que queria fazer isso como profissão? 

Não decidi. Quando vi, já estavam me pedindo documentos, releases, fotos e informações. Fazia aula no Centro Livre de Aprendizagem Musical (CLAM) e logo fui convidada para dar aula de violão, flauta, piano e solfejo. Cheguei a dar trinta aulas por semana. De noite, também trabalhava no Jogral, uma casa de música que era tipo uma boate. Eu ficava fora das oito às quatro da manhã. Quando a gente é jovem, acha isso chique, né!? Hoje, se alguém sugerir para eu não dormir uma noite, não consigo. 

Você tem influência da música erudita e da popular. Como os diferentes ritmos reverberam em você? Você junta o melhor das duas vertentes para criar suas composições? 

Não é deliberado, assim. É bem natural porque eu vivi isso – fiz parte do grupo de choro e também fiz discos de música instrumental. E aí, resolvi que dava para misturar características da música erudita com a popular porque é tudo música. Existe um monte de falsas polêmicas, mas música é música. São duas unidades distintas. Uma falsa polêmica é que a harmonia é elitista – e não é nada. Sempre estive mais preocupada em experimentar, eu faço para mim. E faço o melhor que eu posso com tudo que aprendi, não tenho nenhuma restrição ou impedimento.

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(Caroline Bittencourt/divulgação)

O documentário evidencia a importância dos bares e das ruas de São Paulo na construção da sua carreira. Você acha que a cidade ainda tem esse protagonismo? 

Sim e não. Agora, com a internet, a coisa fica super distribuída. Você pode estar em outro país e encontrar minhas canções de lá. Então todas as redes agora estão online e disponíveis. Quando eu tinha vinte e poucos anos, queria escrever maracatu e não existia nada sobre isso, fui encontrar em um livrinho de um amigo com as folhas meio apagadas. Para você tirar uma música para tocar na noite, precisava ficar esperando o rádio tocar para aprender. 

E outro ponto que o filme toca muito é sobre o machismo e a misoginia. Como eles afetaram o trabalho das mulheres?

Quando eu era jovem, havia cinco, seis mulheres tocando. Hoje, conheço mais de 600! Elas se impõem como compositoras e estamos saindo desse apagamento – essa nova onda de mulheres é muito bem-vinda e está rendendo frutos impensáveis. Fico muito feliz de ver isso acontecer porque a impressão que dava é que não ia acontecer nunca. Todas as vezes que eu chegava em algum lugar, era sempre um desafio: o pessoal perguntava sempre se eu era namorada de alguém. E aí, quando eu começava a tocar, falavam que eu tocava que nem homem. Em alguns lugares, os homens ficavam encarando meu corpo enquanto eu tocava.

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(Léa Freire/arquivo pessoal)

Esse comportamento era normalizado, certo?

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Muito. Era muito comum. Cheguei a fingir que eu tinha relacionamentos homossexuais para as esposas dos músicos não se preocuparem comigo. Muitas artistas paravam de tocar por também passarem por isso. Fácil não vai ser nada nunca, né!? Mas precisamos mudar o pensamento para que elas consigam chegar em mais lugares. 

Você sente que há uma desvalorização das produções brasileiras?

A gente tem uma autoestima baixíssima.Em inglês é o “wannabe” – todo mundo aqui quer ser estrangeiro, europeu ou americano. O que é brasileiro é dito como brega, ruim, um erro absoluto. O mundo reconhece a música brasileira, mas as pessoas não acreditam. Queria que as pessoas tratassem melhor aquilo que é nosso. Nossa música merece, é muito boa, é maravilhosa, riquíssima. É vibrante. 

Como foi parar de fazer música?

Eu estava trabalhando de noite com um quarteto e era gostoso. Até que engravidei. Quando voltei, fui demitida. Isso foi uma decepção – fiquei 11 anos sem tocar. E, claro, fiquei doente. Óbvio, é um clássico. E aí o psiquiatra falou: “querida, você precisa tocar”. E aí ele anotou e eu coloquei em quadro para a família parar de encher a paciência. Se o meu médico mandou, vou obedecer. Estou só cumprindo ordens! Faço música por questões de saúde. 

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(Caroline Bittencourt/divulgação)

Muitas pessoas que não têm proximidade com a música erudita não sabem por onde começar a ouvir. Como podemos educar os ouvidos para começar a perceber diferentes sons?

Se tiver uma escola de música por perto, vale participar. Ela pode trazer milhares de referências. Se você não está na escola de música, saiba que na sala São Paulo tem uma programação maravilhosa de graça. Basta retirar o ingresso uma hora antes e assistir coisas loucas. Há muita programação, você tem que ir e ouvir – a música erudita é bem rica. Para participar e também fazer música, os corais são maravilhosos porque não usam equipamento, você já é seu instrumento. 

A partir do documentário, muitas pessoas que não conheciam seu trabalho vão mergulhar na sua história. O que você quer que reverbere?

Quero que elas se sintam bem ouvindo a música. Se gostarem da música ou não, fico super feliz – sucesso para mim é fazer. Então, sou muito bem sucedida. Tenho a intenção de sensibilizar a partir da música que faço. 

Como você avalia sua trajetória?

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Se não fosse o preconceito, eu teria ido muito mais longe. Era tanta resistência, sabe!? Acho que perdi o tempo e gastei muito remédio. Eu poderia estar estudando piano, sendo produtiva. Mas teve um momento no qual resolvi que era “o boss”. Não esperava as pessoas me chamarem, me tornei chefe e comecei a produzir. Eu tinha um monte de trabalho para fazer porque a chefe era eu. Fundei a Maritaca Discos, minha produtora, e hoje temos quase 60 títulos.

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(Léa Freire/arquivo pessoal)
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