Sophie Charlotte: A caminhada até Gal
A atriz compartilha seu processo criativo de interpretar Gal Costa no cinema
A Revista Bravo! convidou a atriz Sophie Charlotte para compartilhar seu mergulho íntimo no universo de Gal Costa, durante a produção e as filmagens de Meu nome é Gal, de Dandara Ferreira e Lô Politi, que estreia em 12 de outubro. Coincidentemente, a entrevista com a atriz aconteceu no mesmo dia do aniversário da eterna musa tropicalista, em 26 de setembro.
“Ontem eu não conseguia dormir, estava muito emocionada pelo aniversário da Gal Costa. Então, mandei mensagem para a Dandara, compartilhei um vídeo de um show da Gal que assistimos juntas em São Paulo, agradecendo a oportunidade de fazer esse filme. Como que você resume, detalha cinco anos de vida e de trabalho?
Foram muitas pessoas que construíram esse caminhar até o set de Meu nome é Gal, e agora para a estreia. Desde a ligação da Dandara e da Lô Politi, fazendo convite. Aquele foi o melhor “sim” da minha vida, que brotou naturalmente, que me convidou para uma aventura para o maior desafio na minha carreira. Depois, os encontros com Gal e o mergulho absoluto nessa artista. Eu estava terminando as gravações de Os Dias Eram Assim quando recebi a ligação. Foram círculos concêntricos: o convite foi uma gota que foi se abrindo. Alguns meses depois, chegou o momento de encontrar Gal pessoalmente, que já estava sabendo da notícia de que eu a interpretaria. Ainda não havia um roteiro. Eu passei por alguns trabalhos antes de chegarmos no set.
Durante os anos seguintes de preparação, meu assunto principal foi Gal Costa. Ela tomou conta do meu pensamento. Tentei assistir a todos os shows e entrevistas possíveis. O projeto do filme era uma ideia compartilhada, da própria Gal com a Dandara, que nasceu a partir do documentário de Dandara (O nome dela é Gal). Ela me contou que foi Gal que disse que reparou na semelhança do meu timbre com o dela. E aí começou a parte da preocupação de dar conta. ‘Meu Deus, isso realmente é uma possibilidade’, eu pensei.
O exercício era de não congelar e de me permitir curtir esse processo e não deixar que o medo tomasse conta de tudo. Afinal, tinha muita coisa em jogo: a expectativa, o amor e a construção pessoal que cada um fez de Gal Costa. Quando se interpreta um artista com uma obra, isso está ligado à vida de cada um, ao momento em que aquela pessoa escutou a música e recebeu Gal. Às vezes, essa Gal da expectativa das pessoas podia ficar muito grande. Acho que pude manter uma dose de liberdade necessária, tropicalista, de curtir a possibilidade que a vida estava me presenteando. Eu queria curtir, queria que o respeito e a homenagem andassem com a alegria.
A primeira vez que vi a Gal foi numa apresentação na novela Babilônia. Eu gravava com o Bruno Gagliasso, nós somos muito amigos e parceiros. Nós nos encontrávamos e ficávamos tagarelando entre uma cena e outra. Nesse dia, eu combinei com ele de não falarmos nada. ‘É Gal Costa, não quero que ninguém me distraia’, eu disse. Fui até ela e me apresentei. Tem uma foto muito linda desse momento, em que estou fazendo uma reverência a ela. Foi um momento muito especial!
O mergulho em Gal
No início, não tínhamos um roteiro ou um período biográfico definido, apenas uma ideia. Tinha toda a trajetória da Gal para me aproximar. O tempo veio muito a favor para me aprofundar nessa história. As coisas não eram tão imediatas como o que estamos vivendo agora com as redes sociais de 15 segundos.
Eu fui ouvindo os fonogramas, conhecendo as entrevistas. Mas sabia que a Gal nas entrevistas apresentava uma faceta e eu queria entender ela com os seus amigos, ela na intimidade do próprio quarto, ela na intimidade do seu isolamento. Achei que o fonograma, suas criações, representavam um lugar mais potente. Queria captar as histórias que ela cantava, entender o que moveu ela em cada canção. Cada vez que eu escutava uma faixa, percebia que nas repetições ela trazia coisas muito diferentes, como se estivesse contando uma nova história. Em cada modulação, ela trazia algo muito específico.
Gal, ainda menina
Eu era muito pequena quando escutei Gal pela primeira vez, morava em Hamburgo. A voz da Gal era símbolo de brasilidade absoluta, de voz feminina. Na minha casa, não falávamos português, mas escutávamos música brasileira. Os discos que tocavam na vitrola eram de Gal, de Bethânia, do Milton, do Gil, do Caetano. A brasilidade, para mim, representava as minhas férias. Eu vinha para o Brasil, para a casa da minha avó, e sempre sentia um contraste, um choque térmico e cultural muito imensos. Tudo isso estava no meu imaginário quando chegou a hora de fazer esse filme.
Lembro também que, ainda menina, quando comecei a cantar, meu pai me deu uma fita cassete e falou: ‘Aprende essa música’. Era “Garota de Ipanema”. A fita era de João Gilberto. Eu escutei por anos essa fita e me apaixonei perdidamente por essa voz. Anos depois descobri que o João Gilberto era um senhor. Eu era apaixonada por uma voz que para mim era do meu príncipe encantado. No processo da Gal, descobri que ela também teve esse impacto com a voz do João cantando “Chega de Saudade”, que aquele canto revolucionou ela. O primeiro movimento dela na música é muito bossa-novista. Isso traz também uma simetria: aprendi a cantar com ele.
Gal Costa tinha antevisões mesmo na juventude. Existe um momento de sua vida em que isso fica bem nítido: certa vez, apareceu uma pessoa famosa na rua em que ela morava e todas as crianças correram para pedir autógrafo. Naquele instante, Gal ela teve o pensamento de que um dia seria conhecida por cantar. Ela chamava isso de antevisão porque era uma percepção do futuro. Têm pessoas que chamam de sinais, mas era uma sensibilidade muito aguçada.
Gal chegou a ouvir algumas das gravações que fizemos no estúdio antes de irmos para o set. Gravamos todas as faixas de uma vez. Lembro que, em seguida, fiquei muito doente, com o corpo travado. Depois, fomos à casa de Gal para apresentar o projeto visual e as gravações. Ela ouviu. Fez comentários, gostou e aprovou. Gal estava muito presente; esse momento foi muito especial.
Gal foi uma grande artista, mas também era uma pessoa muito simples no trato, muito doce e verdadeira. Olhava no olho e falava com tranquilidade. Ela me disse muitas coisas preciosas, mas que eu gostaria de guardar só para mim.
A explosão de Gal
Gal era uma jovem muito tímida quando chegou ao Rio de Janeiro. É esse momento que abre o filme. Fiquei curiosa para entender que jornada foi essa desse corpo, dessa voz, de libertação dessa timidez. É uma timidez que atravessa ela a vida toda, em maior ou menor presença no palco.
A coragem era palavra central na vida dela, assim como a liberdade. É necessária muita coragem para subir num palco televisionado, no meio de uma ditadura, e cantar ‘É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte’. Acho que depois ela explode na expressão, com gritos de liberdade contra a censura. A partir daí, seu corpo vira símbolo do que ela precisa dizer enquanto artista, mas pessoalmente ela sempre foi muito tímida.
A primeira pessoa que me acompanhou na parte musical foi a Mirna Rubim, que dava aulas no Rio de Janeiro. Nós não sabíamos qual era o repertório do filme e ela me deu caminhos maravilhosos. Em 2019, fui para Salvador conhecer a cidade da Gal, a cultura, as belezas, os rituais, as contradições da cidade, as festas. Fiz a caminhada do Bonfim, fui até a Lavagem da Purificação, em Santo Amaro. A Dandara me possibilitou isso, ela é de Salvador, e me tirou para essa bela dança de conhecer sua cidade.
Logo de cara, fui apresentada ao Cláudio Leal. Ele é jornalista e encontrou materiais que ninguém nunca viu, encontrou histórias sobre a Gal muito fascinantes. Marcaram um encontro com ele no restaurante Poró. Em 15 minutos com ele, eu falei: ‘Esse cara é meu amigo.’ Dessa conversa, fomos andando e não nos desgrudamos mais. Ele está no filme, faz o Torquato Neto. Foi ele quem me apresentou o Jorge Salomão, passamos uma tarde em Santa Teresa.
São tantas pessoas e experiências nessa caminhada do filme Meu nome é Gal. Dandara me apresentou ao Caetano Veloso. Poder conhecê-lo, conhecer os afilhados de Gal foi um sonho na vida. Conheci Dedé Gadelha, amiga de infância de Gal. Cada um trazia uma percepção de sua timidez, de sua doçura. Gal era muito meiga, todos seus amigos falam isso.
Eu chegava de mansinho, tirava o sapato. Queria estar na presença desses amigos, com calma, deixando o elã dessa turma ecoar em mim. Aos poucos vinham as histórias, as memórias, as músicas. Com suavidade fui descobrindo cada vez mais detalhes e incorporei isso na minha interpretação.
Além das lembranças da Gal, tinha o mistério desse tempo. Era necessário entender a revolução dos costumes, entender o que significava ser artista no meio de uma ditadura militar tão violenta e conseguir fincar a bandeira da liberdade, do amor, nas Dunas [Dunas da Gal, em Ipanema], nas areias do Rio. Eles conquistaram, conseguiram, e criaram tanto… Tantos discos icônicos eternos.
Quando chegamos na preparação, nos reunimos numa casa em Cotia, em São Paulo, para ficarmos juntos. É muito difícil performar a intimidade de amizade, precisávamos daquele tempo juntos. Fomos com a preparadora Amanda Gabriel e foi o maior barato. No fim, meus parceiros de cena são meus amigos. A Amanda preparou um caminho por uma pesquisa iconográfica da Gal. Então, pegamos as fotos impressas dessa turma, fotos pessoais mesmo. Tem uma foto linda dela fazendo carinho na orelha do Gil. Que delícia de amizade, que simplicidade.
Tem outra foto icônica dela com uma garrafa de refrigerante na mão com um casacão. Procuramos poses desse corpo, nesse lugar fotografado, para entender o caminho que ele teria na trajetória do filme. Tudo isso antes de chegar na caracterização, na direção de arte e na fotografia; momento em que tudo se junta.
Nesse período, eu e o Rodrigo Lelis ficamos isolados por causa da pandemia de Covid-19. A turma toda já estava se preparando e eu desesperada querendo estar lá com eles. E isso representa justamente o começo do nosso filme, quando a Gal está em Salvador e todos seus amigos estão no Rio. Eu fui a última a chegar nessa preparação. Sem querer, nós nos alinhamos com o que aconteceu com a Gal.
Finalmente, o set
Vivi uma coisa muito especial nesse filme com José Pedro Sotero, o diretor de fotografia do filme. Num dos primeiros dias de filmagem, achei um espelhinho na mesa de cabeceira do quarto do Solar da Fossa (antiga pensão no bairro de Botafogo) e começamos uma brincadeira, uma improvisação, de pesquisa de luzes com aquele espelho, com a câmera. E aí começou uma parceria, uma dança. Não podia ser de outra forma. Como você vai olhar a alma, a emoção de uma pessoa tímida? Você tem que estar muito perto. É o olho da câmera que vai contar essa história. Essa parceria se estabeleceu de uma forma muito intensa. Quando cantamos Fa-Tal, por exemplo, ele dança, gira, ele pula comigo no palco. Já tive experiências maravilhosas com diretores de fotografia, mas essa foi um verdadeiro dar as mãos.
Tentamos não imitar essas pessoas no filme. Foi um exercício de aproximação; eu apontei a minha flecha e fiz tudo ao meu alcance em termos de entendimento, mas respeitando a minha existência, no sentido de sou eu com ela, não sou ela. De maneira alguma, gostaria que a minha interpretação parecesse uma caricatura de Gal, nem mesmo de sua timidez. Ela é a voz de cristal, ela é a homenageada. Meu desejo era que aquilo apontasse e que viesse do coração, mas eu conto também que o público terá que dar esse passo para acreditar. Nós estamos fazendo um filme de ficção, então você tem que querer sonhar comigo. Queria entender os ritmos dela, sua maneira de ser. É gostoso quando nós nos misturamos e confundimos quem assiste, mas isso não era o mais importante. A homenagem era mais forte do que a performance.
A Gal é conhecida e amada por todos, mas a história que contamos é de uma jovem artista chegando no Rio de Janeiro, descobrindo sua própria voz, descobrindo a mensagem que ela precisa jorrar para a juventude num momento tão tenso e triste. E a liberdade que ela vai promover para ser quem ela é, com sua autenticidade e o brilho na voz. Viva, Gal!