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OLÁ,

Uma comédia que não oprime e não ofende

As autoras da série Encantado’s, Thais Pontes e Renata Andrade, querem fazer comédia que cria identificação sem ofender

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 5 jun 2023, 15h54 - Publicado em 5 jun 2023, 10h22
Thais Pontes e Renata Andrade, roteiristas de Encantado's
 (Ana Alexandrino/arquivo)
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Há muito que as roteiristas Thais Pontes e Renata Andrade se conhecem. Antes de fazerem dupla na criação da série Encantado’s, da TV Globo, eram colegas de turma na Oficina para Autores/as Negros/as da mesma emissora, quando já eram colegas de profissão, e, acima de tudo, amigas de uma relação que começou há 25 anos. Suas trajetórias são muito parecidas. Ambas são publicitárias, e o gosto pela escrita e o universo da comédia nasceram de uma sensibilidade que as duas compartilham: o gosto pelo cotidiano, pelo ato de observar o movimento simples da vida. Não imaginavam que poderiam um dia se tornar autoras profissionais. Seus textos eram, no máximo, partilhados, com os amigos de redes sociais. Até decidirem fazer um curso de roteiro e de lá para cá, o reconhecimento veio para cada uma, e não demorou até serem convidadas a participarem da Oficina da Globo em 2018.

Thais Pontes e Renata Andrade, roteiristas de Encantado's
(Ana Alexandrino/arquivo)

Em um desses encontros, a turma foi desafiada a criar um projeto de comédia. As amigas não hesitaram, formaram uma dupla e foram ao bar trocar ideias. Ali nasceu o esboço de Encantado’s. A história gira em torno dos irmãos Ponza, Olímpia (Vilma Melo) e Eraldo (Luís Miranda), que vivem em Encantado, um bairro tradicional do subúrbio carioca. Lá, administram o Encantado’s, um supermercado herdado do pai. Esse, no entanto, não foi o único bem deixado. Os filhos comandam também a Joia do Encantado, uma escola de samba do grupo D do carnaval carioca. É a partir dos gênios divergentes dos irmãos que os conflitos nascem. Olímpia, por um lado, é extremamente organizada com a cabeça nos negócios, enquanto Eraldo é estabanado e cria as mais diversas dificuldades para a irmã. Os roteiristas Antonio Prata e Chico Mattoso se juntaram à dupla como redatores finais da série.

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Para as autoras, criar uma boa história é uma tarefa árdua, pois isso implica em ter um olhar apurado para as mais diversas realidades, na capacidade de conectá-las de forma orgânica e verossímil, e dar a esse universo uma forma espirituosa e hilária. Além disso, há uma dificuldade intrínseca da comédia, a habilidade de fazer com que diferentes espectadores se reconheçam dentro de determinada cena. Isso, não é preciso dizer, sem fazer uso de estereótipos, preconceitos ou instilando ódio disfarçado. Por outro lado, fugir dessas armadilhas, para a dupla, é tarefa fácil. “Não existe maior fonte de humor do que o cotidiano”, afirma Thais.

Obrigado por essa conversa. Quer começar com uma pergunta mais objetiva. Para vocês, qual é o desafio de fazer comédia?
Thais Pontes: Ao mesmo tempo que fazer comédia é uma delícia, é meio desesperador porque a resposta é imediata, né? Você sabe na hora se funcionou ou não. Não tem meio termo. Rola ou não rola e, inevitavelmente, isso é uma pressão. Mesmo assim, é maravilhoso… o processo de criação da comédia é muito bom. Trabalhoso, mas ótimo.

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Renata Andrade: O grande desafio é encontrar o ponto de identificação. Considero a comédia um gênero em que as pessoas se reconhecem, se conectam. A comédia, para mim, nada mais é do que uma lente de aumento de tudo o que vemos, vivemos e em Encantado’s nós perseguimos isso. Tudo tem outro tamanho quando o propósito é fazer rir, mas acho que a nossa série é, de certa forma, o reflexo de comportamentos, visões e de sonhos genuínos. O nosso desafio é trazer todos esses elementos, mas de forma leve, que provoque identificação.

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Quais os parâmetros vocês utilizam nesse processo?
Thais: Acho que não há uma resposta certa. Os parâmetros variam de quem faz e de quem assiste. Acredito que o DNA do humor seja a observação e a nossa bagagem interna. Acredito muito no poder da observação. Eu sempre tive um olhar atento e o coração aberto para tudo e todos ao meu redor. Não existe maior fonte de humor do que o cotidiano. Acho que uma boa comédia vem de um senso de observação apurado e da habilidade de manipular o amor, a raiva, a angústia… e transformar todos esses sentimentos e ferramentas em algo identificável pela ótica do humor.

Renata: Acho que não há regra. Pelo menos não para a comédia que fizemos na série. Ali, usamos como fonte para a nossa história, o nosso repertório, as nossas observações. Erguemos as tramas e construímos as personalidades dos personagens da série a partir disso. Acho que uma boa comédia é aquela que estabelece essa relação de proximidade, identificação e de intimidade com o público. É a que faz rir nas pequenas coisas, nas mais prosaicas.

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“Não existe maior fonte de humor do que o cotidiano. Acho que uma boa comédia vem de um senso de observação apurado e da habilidade de manipular o amor, a raiva, a angústia… e transformar todos esses sentimentos e ferramentas em algo identificável pela ótica do humor”

Thais Pontes

Gostaria que vocês falassem das escolhas que fizeram para compor esse universo do Encantado’s, juntando um mercado, uma comunidade e o carnaval. O que cada um desses elementos traz e representa nessa história?
Thais: Esses universos sempre foram muito importantes e caros para mim e para Renata. Eles vieram pelo amor que temos por eles. No dia em que nos sentamos para pensar nesse projeto, nos perguntamos: “quem a gente quer ver na TV?” “sobre o que a gente quer falar?”. A resposta foi simples: a gente queria se reconhecer. A partir daí, não foi difícil chegar nessa base de sustentação do Encantado’s. Na nossa história, o supermercado, o carnaval e o subúrbio não são acessórios na trama, eles são personagens importantíssimos. O supermercado é um microcosmos da sociedade e chegou primeiro na história. Passamos alguns dias trabalhando só com esse universo, mas sentimos que a história precisava de um conflito e foi aí que entrou o carnaval. Decidimos que o conflito viria de interesses distintos dos irmãos Ponza, que herdaram do pai esses dois “negócios”: a Olímpia prefere o supermercado “Encantado´s” e o Eraldo prefere a escola de samba “Joia do Encantado”, que é uma escola do grupo D do carnaval carioca, outra escolha que norteou a criação da série. Nós queríamos falar desse carnaval pouco explorado, desse carnaval que não tem os holofotes da Sapucaí, mas tem integrantes cheias de talento, garra e amor pelo carnaval. Acho que é uma história sobre o amor deles por esses negócios, mas também sobre legado. Eles brigam, se estranham, mas se amam profundamente e querem manter e honrar o legado do pai.

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Renata: Nós tínhamos uma certeza: queríamos fazer uma série sobre relações, sobre pessoas que o público batesse os olhos e se visse, se sentisse representado. O supermercado veio primeiro. Queríamos falar sobre esse espaço de circulação de pessoas de todos os tipos e onde trabalham profissionais, em geral, invisibilizados pela sociedade. Nosso propósito era mostrar quão ricos e plurais eles são, quão protagonistas de suas histórias eles são. Costumo dizer que gente comum é o melhor e mais interessante tipo de gente, e lá há gente comum de vários tipos. O samba, uma paixão comum às duas, chegou logo depois, só que não queríamos falar da riqueza e do glamour da Sapucaí, mas sim do carnaval da Intendente Magalhães, também incrível, com muita gente apaixonada, mas com menos recursos. Um modelo de carnaval que não se limita ao Rio de Janeiro e é feito em periferias de todo o Brasil. Entendemos aí que unir esses dois universos tão antagônicos traria o caos e os perrengues que queríamos para essa comédia. A escolha dos protagonistas por cada negócio fundado pelo pai, Seu Geraldo, já falecido, deu match. Contar as histórias a partir desses pontos de partida foi e tem sido bem gostoso.

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O que vocês queriam mostrar com a série? Além do humor, há intenção de refletir questões e problemas sociais?
Thais: O Encantado´s quer mostrar a história de um Brasil que também pode ser feliz. A gente fala de dois universos super ricos e importantes, pelo ponto de vista de quem faz. Os funcionários do supermercado e os componentes da escola de samba são os donos dessa narrativa. Queríamos inverter a câmera e dar protagonismo para quem merece ter protagonismo. Além disso, é uma série com maioria negra (dos 17 personagens, 14 são negros) e a gente foge do marcador da violência. Durante muito tempo, o padrão era associar corpos pretos a violência e subalternização… no Encantado´s a gente quis mudar essa narrativa. Claro que tratamos de problemas sociais, mas a série não é sobre isso. Encantado´s é uma comédia sobre ambiente de trabalho, sonhos, família, fé e principalmente relações. Na série, mostramos que somos mais que as nossas dores. Somos plurais.

Renata: O humor é uma ferramenta muito eficaz para tocar em questões em debate na sociedade. Em “Encantado’s”, nós usamos isso ao nosso favor. A predominância de atrizes e atores negros, uma conquista ainda tímida nas produções televisivas, nos deu ferramentas para que trouxéssemos à baila assuntos que geram discussão. Na nossa série, eles estão todos lá, ainda que não tenhamos, na primeira temporada, transformado os debates sobre racismo em tramas principais dos episódios. Falamos muito pontualmente, colocamos o opressor em seu lugar e empoderamos os oprimidos, mas sempre com a pegada do humor, que é a essência da série. Não tocar nessas questões estava fora de cogitação. Não abríamos mão de trazer para a nossa história as vivências que nós, mulheres negras, conhecemos muito bem, mas fizemos isso de forma leve, sempre a serviço do humor.

“Costumo dizer que gente comum é o melhor e mais interessante tipo de gente, e lá há gente comum de vários tipos. O samba, uma paixão comum às duas, chegou logo depois, só que não queríamos falar da riqueza e do glamour da Sapucaí, mas sim do carnaval da Intendente Magalhães, também incrível, com muita gente apaixonada, mas com menos recursos”

Renata Andrade
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Um debate que não é novo, mas acredito que não foi superexplorado diante da falta de respostas é sobre os desafios de fazer comédia sem ofender ninguém, não tomar para cristo alguma minoria ou zombar do corpo do outro. Para muitos, não sobra muita coisa para fazer graça. Dito isso, pergunto: onde está a comédia para vocês?
Thais:
Olha, se um profissional acha que o fato de não poder ofender alguém limita o processo criativo, essa pessoa está precisando repensar muitas coisas. O mundo está mudando e, felizmente, muitas coisas que eram aceitáveis até pouco tempo não são mais. Que bom! A comédia está no cotidiano, está nas relações, está em cutucar as feridas, está na identificação, está no incômodo… está em muitos lugares possíveis e certeiros longe da ofensa.

Renata: Achar dificuldade para fazer humor sem oprimir alguém é desculpa de quem não quer se adequar aos novos tempos, de quem não quer se privar de oprimir grupos já tão massacrados. A comédia está em tudo, está no lado torto da vida, está nas relações. Basta ter um olhar atento para extrair tudo isso e fazer um produto que provoque no público o riso e a identificação sem ficar refém de uma ridicularização infeliz que nada tem a ver com os avanços nesse sentido que temos tido na sociedade.

Renata Andrade, roteirista de Encantado's
(Ana Alexandrino/arquivo)

É mais fácil vislumbrar a dinâmica de criar uma obra em conjunto, quando pensamos em atores ou mesmo diretores, mas quando falamos de roteiristas, o trabalho parece um pouco mais intrincado. E me parece que vocês alcançaram uma boa sintonia juntas. Como funciona a divisão de trabalho e escrita entre vocês?
Thaís: Eu e Renata temos uma parceria e cumplicidade muito grandes. A gente se admira e se respeita muito e isso ajuda na nossa dinâmica de trabalho. No Encantado´s, o nosso trabalho é muito coletivo. Na primeira temporada, éramos quatro roteiristas (nós duas, o Antonio Prata e o Chico Mattoso, que eram também os redatores finais) e o trabalho era extremamente colaborativo e prazeroso. Todos nós trabalhamos com o mesmo objetivo: fazer a melhor série possível. E isso aconteceu para além da sala de roteiro, a parceria com o nosso diretor artístico Henrique Sauer foi fundamental. Além de extremamente talentoso, ele é um diretor muito atento à escuta e isso fez toda diferença no resultado que vocês veem na tela. O Encantado´s é fruto do trabalho coletivo de uma equipe incrível e a fim de fazer dar certo.

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Renata: Eu e Thais nos conhecemos bem, temos intimidade e levamos para a nossa relação de trabalho o melhor da nossa amizade. Criar ao lado de alguém assim é muito simples. Não temos pudores e sabemos que podemos ser muito francas uma com a outra. Encantado’s nasceu dessa franqueza, dessa amizade genuína. Aliamos à nossa sintonia a sintonia da dupla Antonio Prata e Chico Mattoso e, juntos, definimos o nosso método de trabalho, que deu certo por ser extremamente colaborativo. Participamos todos de todos os processos, o que contribuiu para que fizéssemos as escolhas certas para a história que estávamos contando, para os rumos dos personagens, enfim, para tudo.

Thais Pontes, roteirista de Encantado's
(Ana Alexandrino/arquivo)

“Se um profissional acha que o fato de não poder ofender alguém limita o processo criativo, essa pessoa está precisando repensar muitas coisas. O mundo está mudando e, felizmente, muitas coisas que eram aceitáveis até pouco tempo não são mais. Que bom”

Thais Pontes

Que tipo de pesquisa foi necessária nesse processo para fazer Encantado’s?
Thaís: A vivência ajudou muito nesse sentido. Eu conheço esse universo, eu conheço aqueles personagens desde sempre. Então, a primeira pesquisa veio da bagagem pessoal. Obviamente, isso não é suficiente e tivemos profissionais incríveis nos auxiliando: o departamento artístico da Globo preparou uma semana de imersão da equipe em supermercados, escolas de samba pequenas e tivemos a honra de ter o Luiz Antônio Simas como nosso consultor. Ele é um conhecedor profundo da cultura popular e de tudo o que abordamos na série. Então, depois que os roteiros estavam prontos, ele leu tudo para apontar algum tipo de falha. A imersão, a pesquisa e a consultoria do Simas foram muito importantes.

Renata: Eu e Thais recorremos às nossas bagagens, sobretudo na criação da série. Eu, particularmente, nasci e cresci em Oswaldo Cruz, no subúrbio do Rio, e falo com propriedade sobre muitas daquelas vivências. Na etapa de preparação para a série, nós quatro (eu, Thais, Chico e Prata) tivemos a oportunidade de viver uma imersão nesses universos (o samba da Intendente Magalhães e o supermercado de bairro). A experiência foi riquíssima e nos deu ainda mais material para trabalhar. Voltamos para a redação com novas possibilidades, com novas maneiras de enxergar o nosso supermercado, a nossa escola de samba e a maneira com que os nossos personagens se relacionariam. Foi maravilhoso viver esse processo.

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