Em “O quarto ao lado”, Almodóvar reflete sobre amizade e eutanásia
Primeiro longa-metragem do cineasta espanhol em língua inglesa estreia no Brasil nesta quinta-feira (24)
Muitos dos filmes de Pedro Almodóvar apresentam um elemento comum e muito caro para nós brasileiros. Suas tramas começam quase como se o cineasta espanhol estivesse compartilhando uma grande fofoca. Ele nos convida para sua casa, nos acomoda no sofá, serve café com bolo e inicia um relato que, a princípio, parece banal e cotidiano. Porém, logo vem acompanhado de alguma atrocidade, revelando que nada é tão simples quanto parece. Esse é um paralelo imaginado, claro, da sensação que o diretor provoca. Arrisco a dizer que é esse é um dos motivos que fazem com que seus filmes causem um impacto peculiar em nós. A história é o coração do cinema que ele cria, sempre foi assim.
Seu último lançamento, “O Quarto ao Lado”, que estreia hoje (24) nos cinemas do país, é uma adaptação do romance “O que você está enfrentando”, de Sigrid Nunez (Editora Instante). Na obra original, Nunez apresenta, em primeira pessoa, o relato de uma mulher que se disponibiliza a ouvir as dores e lutas das pessoas ao seu redor, enquanto lida com um drama pessoal: uma de suas melhores amigas enfrenta um câncer terminal e, ciente da iminente morte, faz um pedido inusitado à narradora.
Retornando ao filme, “O Quarto ao Lado” é o primeiro longa-metragem de Almodóvar filmado em inglês e se passa em Nova York. Nele, o diretor traz de volta uma de suas últimas colaboradoras, Tilda Swinton, que interpreta Martha, uma repórter consolidada na cobertura de guerras. A história, no entanto, se concentra em Ingrid, vivida por Julianne Moore, uma autora renomada que, naquele momento, lança seu mais novo livro. A escolha de Julianne para o papel, revelou Almodóvar, foi uma sugestão inicial de Tilda. Coincidentemente, esse era um nome que ele já tinha em mente.
Durante a divulgação da publicação, Ingrid reencontra uma amiga em comum, que a informa sobre a grave condição de Martha e sugere que ela a visite. A protagonista, então, começa a frequentar a casa da amiga doente. As duas jornalistas se conheceram anos atrás, quando trabalhavam em uma revista.
Uma das características essenciais do filme é que todas as imagens são construídas a partir das palavras e dos diálogos intensos entre as personagens. Na primeira parte da narrativa, pouco acontece além dos encontros recheados de memórias e das tentativas das duas de se atualizarem sobre seus dramas mútuos.
As cenas alternam entre caminhadas e conversas em ambientes internos, como o hospital ou a casa de Martha e remetem a alguns dos filmes de Woody Allen, que têm como pano de fundo Nova York. A pouca quantidade de ações não torna o filme enfadonho; as conversas são dinâmicas e entremeadas por humor característico de Almodóvar e de lembranças mais difíceis, como as situações em que Martha precisou viajar para locais em guerra ou o arrependimento que carrega por sua relação distante com a filha.
Na fase inicial, Martha demonstra um otimismo moderado, pois inicia um tratamento experimental que, a princípio, apresenta resultados. Contudo, essa esperança logo se dissipa e, em seguida, ela se vê obrigada a confrontar a morte que se aproxima.
Após a intimidade restabelecida entre as duas, Martha testa a cumplicidade de Ingrid, revelando que adquiriu um medicamento utilizado como protocolo de eutanásia e que está decidida a escolher o dia de sua morte. Há uma ressalva, ela não quer estar sozinha quando isso acontecer e propõe que Ingrid esteja por perto, não exatamente no mesmo cômodo, mas no quarto ao lado. “Se eu chegar lá antes, o câncer não vencerá a mim”, diz Martha. Assim, a repórter convida a amiga para uma viagem de um mês a uma belíssima casa próxima a Woodstock. Inicialmente aterrorizada com o pedido, Ingrid reluta, mas acaba aceitando o desafio.
O que torna “O Quarto ao Lado” especial é o retrato da amizade entre as personagens, sustentado pela interpretação e pela química entre as atrizes. Almodóvar evita os dramas típicos que frequentemente permeiam as relações nas telas, como decepções, acompanhadas por sentimento de traição e concluída com reconciliações. Em vez disso, destaca a beleza do contato diário entre as duas mulheres e o esforço que fazem para serem boas companhias uma para a outra, criando um espaço de honestidade.
A obra segue o método característico do cineasta, que se mostra profundamente engajado na fotografia e na direção de arte das cenas. Há uma série de contrastes entre as personagens, evidenciados pelas cores que vestem e pelos cenários que servem como pano de fundo. Isso tudo recupera a fidelidade do artista ao dar protagonismo às personagens femininas. Além disso, Almodóvar faz referências a obras artísticas que dialogam com cada um de seus filmes. Neste, destaca-se o conto “Os mortos”, de James Joyce, que é mencionado em várias ocasiões, que trata, previsivelmente, da simplicidade da vida, das relações e da morte.
Embora pareça um longa-metragem centrado em um drama particular, ele explora temas estruturais e questões globais. Em um diálogo com Ingrid, o personagem Damian (interpretado por John Turturro) questiona os limites da vida contemporânea, mencionando o fascismo, as guerras e o colapso das mudanças climáticas. “O Quarto ao Lado” não hesita em confrontar o tabu da eutanásia em casos de doenças terminais. É importante destacar que esse procedimento, assim como a morte assistida, ainda é considerado crime em muitos lugares – inclusive nos Estados Unidos – sendo regulamentado em poucos países, como Canadá, Países Baixos e Bélgica. Damian provoca uma reflexão sobre os motivos que levam as pessoas a desejarem viver em meio ao caos.
Ainda que não seja panfletário, a produção ressoa como um manifesto pessoal de Almodóvar. “Este filme defende a eutanásia”, declarou ele em uma entrevista. A trama poderia sugerir um caminho sombrio e triste, mas, na verdade, é delicada e reafirma o que há de mais valioso na vida: as relações humanas.
O filme, infelizmente, comete uma gafe ao escalar Tilda Swinton para interpretar a filha de Martha. Sua aparição ocorre apenas no final, e o que deveria ser um momento de comoção ganha um tom cômico.
“O Quarto ao Lado” se destacou recentemente no Festival de Veneza, onde conquistou o Leão de Ouro de melhor filme da competição oficial. A expectativa é que figure na lista final das principais categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme, Roteiro Adaptado, Direção e Melhor Atriz, que pode ser disputado por Tilda e Julianne Moore.