Entre mitos e revoluções, Leila Diniz
Documentário que aborda vida e obra da revolucionária atriz brasileira está disponível no Itaú Cultural Play
Muito antes de ser fundada a tradição judaico-cristã, homens que se intitulavam donos da razão, deram passos significativos em direção à elaboração de conceitos ainda hoje muito presentes nas nossas atitudes e pensamentos quando se trata das mulheres. Aristóteles, por exemplo, foi fundamental na formulação da ideia de que as mulheres estão fora do acordo imbricado à democracia ateniense, sendo a democracia o poder do povo, do sujeito considerado humano.
Séculos depois, o cristianismo daria continuidade à nulidade da condição humana inerente também às mulheres ao reduzi-las aos signos da Virgem Maria e da Eva. Sendo Maria símbolo do que, segundo a ideologia, as mulheres devem ser: mães, delicadas e servis. Eva representando o oposto: mulher insubmissa, sagaz, corajosa. Como toda dicotomia e binarismo é incompatível com a complexidade inerente à humanidade, nos resta concluir que a sociedade ocidental tem há milênios negado às mulheres a garantia de direitos. Algo que se intensifica infinita e injustamente quando pensamos nas selvagerias do colonialismo e racismo no Brasil e suas reproduções atuais no cotidiano de mulheres pretas, sobretudo as pobres.
O documentário Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar, dirigido pela Ana Maria Magalhães, aborda a vida da atriz Leila Diniz. Realizado a partir de relatos que foram majoritariamente registrados no ano de 1982, dez anos após a morte da atriz, o filme propõe ao público um olhar íntimo e até mesmo confuso. A desordem se estabelece, não por descuido narrativo ou técnico, mas pelas diversas imagens da Leila que se sobrepõem relato após relato.
Através dessa instigante confusão, matéria prima do filme em questão, percebemos como Leila, com seu corpo e rosto símbolo do que parte significativa da sociedade considera como ideal, surpreendeu o país ao passear entre as caixas que apreendem os mitos. Leila rasgou as teias do aprisionamento. Com sua liberdade para ser complexa, múltipla, ela apavorou os olhos que buscavam reduzi-la a “bela, recatada e do lar”, ao mesmo tempo que confundiu aqueles que buscavam enquadrá-la como imoral para não falar de quem a considerava como alienada.
As características da personalidade da Leila são extensões da sua força. No filme, porém, tais traços, nos são apresentados a partir de relatos terceiros. Com os olhos treinados pela histórica onda de debates dos anos 10, se percebe que a maioria dos depoentes são homens brancos da classe média. Sim, a maioria pertencentes à classe artística (o que não é conclusivo por si só) e que endeusam Leila, respeitam-a pelos limites por ela impostos e ultrapassados. Sempre algum carinho; e os limites. Contudo, se observarmos bem, algo se mostra intrínseco à tamanha admiração.
Ao longo dos anos foi se estabelecendo como verdadeira uma projeção sobre a Leila Diniz que, embora já existisse enquanto ela era viva, foi se intensificando após a sua morte. De forma quase que instintiva, percebemos como os relatos no documentário chegam a sustentar e fomentar a construção desse mito em torno dela, da sua imagem: mulher tão rebelde quanto amável, tão disruptiva quanto familiar, tão sexualmente ousada quanto romântica e por aí vai. Um mito que influenciou gerações. Um mito muito utilizado para sinalizar como deveriam ser as mulheres de um novo tempo. Um mito que é surreal como todos, mas muito semelhante àqueles construídos acerca da imagem da mulher no Ocidente.
É quase como se, embora de maneira inconsciente, tenhamos repetido a tentativa de aprisionamento, de distanciamento da mulher da humanidade, do ordinário. Afinal de contas, é justamente para isso que servem mitos e imagens nos altares: para que se almeje ser como ela sabendo também que jamais deverá ousar fazê-lo. Ou seja, é uma constante fonte de inspiração e distanciamento. E é curiosa a forma como o mito em torno da Leila Diniz abarca e venera a sua iniciativa de usar biquíni grávida e falar palavrão, mas é incapaz de assimilar da mesma forma a sua liberdade em relação aos pentelhos, por exemplo.
Sendo assim, podemos pensar que o documentário Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar proporciona uma grande contribuição para a imagem e legado de Leila Diniz: a apresentação da sua humanidade. Algo que a atriz sempre sustentou e sem a qual não é possível garantir a ampliação dos direitos e liberdades, inclusive de costumes, área na qual ela foi corajosa revolucionária e protagonista de um movimento cujo frutos ainda hoje se multiplicam.
Para assistir ao documentário basta acessar à plataforma Itaú Cultural Play, realizar um simples cadastro e aproveitar toda a diversa programação da plataforma.