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Entre mitos e revoluções, Leila Diniz

Documentário que aborda vida e obra da revolucionária atriz brasileira está disponível no Itaú Cultural Play

Por João Victor Guimarães
Atualizado em 28 nov 2023, 13h07 - Publicado em 28 nov 2023, 13h05

Muito antes de ser fundada a tradição judaico-cristã, homens que se intitulavam donos da razão, deram passos significativos em direção à elaboração de conceitos ainda hoje muito presentes nas nossas atitudes e pensamentos quando se trata das mulheres. Aristóteles, por exemplo, foi fundamental na formulação da ideia de que as mulheres estão fora do acordo imbricado à democracia ateniense, sendo a democracia o poder do povo, do sujeito considerado humano.

Séculos depois, o cristianismo daria continuidade à nulidade da condição humana inerente também às mulheres ao reduzi-las aos signos da Virgem Maria e da Eva. Sendo Maria símbolo do que, segundo a ideologia, as mulheres devem ser: mães, delicadas e servis. Eva representando o oposto: mulher insubmissa, sagaz, corajosa. Como toda dicotomia e binarismo é incompatível com a complexidade inerente à humanidade, nos resta concluir que a sociedade ocidental tem há milênios negado às mulheres a garantia de direitos. Algo que se intensifica infinita e injustamente quando pensamos nas selvagerias do colonialismo e racismo no Brasil e suas reproduções atuais no cotidiano de mulheres pretas, sobretudo as pobres.

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Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell na Passeata dos Cem Mil. (Leila Diniz/arquivo)

O documentário Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar, dirigido pela Ana Maria Magalhães, aborda a vida da atriz Leila Diniz. Realizado a partir de relatos que foram majoritariamente registrados no ano de 1982, dez anos após a morte da atriz, o filme propõe ao público um olhar íntimo e até mesmo confuso. A desordem se estabelece, não por descuido narrativo ou técnico, mas pelas diversas imagens da Leila que se sobrepõem relato após relato. 

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Cena de “Já Que Ninguém Me Tira Para Dançar” dirigido por Ana Maria Magalhães (Ana Maria Magalhães/divulgação)

Através dessa instigante confusão, matéria prima do filme em questão, percebemos como Leila, com seu corpo e rosto símbolo do que parte significativa da sociedade considera como ideal, surpreendeu o país ao passear entre as caixas que apreendem os mitos. Leila rasgou as teias do aprisionamento. Com sua liberdade para ser complexa, múltipla, ela apavorou os olhos que buscavam reduzi-la a “bela, recatada e do lar”, ao mesmo tempo que confundiu aqueles que buscavam enquadrá-la como imoral para não falar de quem a considerava como alienada.

As características da personalidade da Leila são extensões da sua força. No filme, porém, tais traços, nos são apresentados a partir de relatos terceiros. Com os olhos treinados pela histórica onda de debates dos anos 10, se percebe que a maioria dos depoentes são homens brancos da classe média. Sim, a maioria pertencentes à classe artística (o que não é conclusivo por si só) e que endeusam Leila, respeitam-a pelos limites por ela impostos e ultrapassados. Sempre algum carinho; e os limites. Contudo, se observarmos bem, algo se mostra intrínseco à tamanha admiração.

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Realizado em 1982 e remasterizado em 2021, o documentário inédito tem sua estreia na seção Mostra Brasil da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Nova Era Produções/divulgação)

Ao longo dos anos foi se estabelecendo como verdadeira uma projeção sobre a Leila Diniz que, embora já existisse enquanto ela era viva, foi se intensificando após a sua morte. De forma quase que instintiva, percebemos como os relatos no documentário chegam a sustentar e fomentar a construção desse mito em torno dela, da sua imagem: mulher tão rebelde quanto amável, tão disruptiva quanto familiar, tão sexualmente ousada quanto romântica e por aí vai. Um mito que influenciou gerações. Um mito muito utilizado para sinalizar como deveriam ser as mulheres de um novo tempo. Um mito que é surreal como todos, mas muito semelhante àqueles construídos acerca da imagem da mulher no Ocidente.

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Cena de “Já Que Ninguém Me Tira Para Dançar” dirigido por Ana Maria Magalhães (Ana Maria Magalhães/divulgação)

É quase como se, embora de maneira inconsciente, tenhamos repetido a tentativa de aprisionamento, de distanciamento da mulher da humanidade, do ordinário. Afinal de contas, é justamente para isso que servem mitos e imagens nos altares: para que se almeje ser como ela sabendo também que jamais deverá ousar fazê-lo. Ou seja, é uma constante fonte de inspiração e distanciamento. E é curiosa a forma como o mito em torno da Leila Diniz abarca e venera a sua iniciativa de usar biquíni grávida e falar palavrão, mas é incapaz de assimilar da mesma forma a sua liberdade em relação aos pentelhos, por exemplo.

Sendo assim, podemos pensar que o documentário Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar proporciona uma grande contribuição para a imagem e legado de Leila Diniz: a apresentação da sua humanidade. Algo que a atriz sempre sustentou e sem a qual não é possível garantir a ampliação dos direitos e liberdades, inclusive de costumes, área na qual ela foi corajosa revolucionária e protagonista de um movimento cujo frutos ainda hoje se multiplicam. 

Para assistir ao documentário basta acessar à plataforma Itaú Cultural Play, realizar um simples cadastro e aproveitar toda a diversa programação da plataforma. 

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