O som por trás dos muros
Em nova coluna para Bravo!, Luana reflete sobre "Zona de Interesse", o horror da desigualdade e do preconceito racial no Rio
Esses dias contei os tiros, 116. Moro num prédio de elite na Gávea de onde escuto os sons da Rocinha. Passei minha infância em São Conrado, muito cedo aprendi a distinguir fogos de tiros. Minha filha de 5 anos também já sabe desde os 4. Em alguns fins de tarde enquanto ela dispara bolinhas de sabão da boca de um peixe, ouvimos os disparos de AR-15. Alguma coisa sempre estourando. O café tá na mesa, tem panqueca, fruta, mel e iogurte, quem está sendo atingido? Quantos filhos, irmãos, mãe e pai vivos, avós? É confronto ou bala perdida, tem diferença? É mulher grávida, tem neném esperando em casa, é bandido ou polícia, é uma pessoa preta? É criança? É pessoa preta, preta ou preta?
Na resenha sobre o filme Zona de Interesse (de Jonathan Glazer) para a revista Monet, Giovana Abrantes ressalta o trabalho do designer de som, o impressionante Johnnie Burn, como uma espécie de segundo filme. Aquele ambiente familiar harmonioso à revelia do horror que acontece ao fundo – e quando digo ‘ao fundo’ me refiro ao que vemos através daquele muro, mas principalmente ao que se ouvem por detrás daquelas falas – me causou náusea e, assombrosamente, culpa. Culpa, esta, que me faz escrever esse texto e talvez pensar em maneiras de ser mais efetiva contra a violência racial no meu país mas que, na maioria das vezes, não me torna melhor que inamovível ou insuficiente.
Pensei na minha casa.
Giovana nos lembra que aquelas figuras pulando na piscina e colhendo flores enquanto milhares de judeus, poloneses, eslavos, ciganos, soviéticos, deficientes físicos e mentais, homossexuais, Maçons, Testemunhas de Jeová e outros povos discriminados – sempre bom lembrar que não foram só Judeus – eram exterminados atrás do muro, não são criaturas asquerosas, tampouco anti-heróis ou vilões como foram retratados em muitos outros filmes do gênero. O ponto cirúrgico da obra do também diretor de Strasbourg 1518 são, como ela mesma descreve, “monstros do pior tipo: parecem-se com qualquer um de nós”.
Sem entrar no mérito comparativo de tragédias, histórico-cultural ou de contexto sociopolítico, até porque nosso presidente já está suficientemente no foco dessa discussão (injustamente) e quem sou eu (que não estou) na fila do pão pra quem as armas são apontadas, não é mesmo? Mas a realidade é que vivemos surdos pra sobreviver. Cegos por opção. Hipócritas, esse sobrenome do meio de todos nós, vilipendiosos. E claro que não estou inaugurando nenhum discurso aqui. O problema é que, apesar de estar num momento de vida voltado pra falar de amor (quem sabe na próxima quarta?), a trilha sonora, o “som ao redor” – e olha que nunca entendi música de fundo (tampouco o Chico Buarque, adorei saber disso) posto que meus ouvidos se voltam pra ela e nada mais importa – anda retumbante até para os surdos sociais das margens do Ipiranga. Adoraria poder discorrer sobre o quanto ando pelas ruas com o sorriso na cara de quem foi dormir embalada por Gal, Marina, Caetano, Sueli, Aragão, Donato, Djavan e Ludmilla, mas o cachorro do vizinho não para de latir.
A criança pedindo uma lata de leite, a criança drogada que não levou o dinheiro da lata de leite e apanhou dos pais também drogados por não terem uma lata de leite pra dar pra criança, o malabarista do sinal de uma mão só, a repulsa por um motorista preto confinado num programa cruel que não abaixa a cabeça para patricinhas brancas, os palestinos assassinados na fila da comida, o rap das armas que permeia a janela da minha casa, nada se ouve no fundo. “Nada se ouve ou se escuta muito menos se sente (…)”, já cantava a bola nosso bom e novo Pequeno Príncipe, único habitante, branco, de seu planetinha sem muros.
Nosso planeta tem 8 bilhões de habitantes. No Brasil são 478 mil homicídios por ano. 78% pessoas pretas. Há muros por todo lado. O amor não é cego. Nem surdo.