As aventuras de Caco Ciocler como Overman
Antes de ser considerado para interpretar, no cinema, o super-herói criado por Laerte, o ator precisou provar seu lado bagaceira
O Brasil carecia de super-heróis e a cartunista Laerte Coutinho sabia disso. Enquanto isso, havia uma abundância nos EUA de personagens com superpoderes de todos os tipos. Era 1998, quando surgiu a ideia de criar um vigilante brasileiro, com todas as características que isso implicava. Alguém que fosse inspirado, mas também uma sátira do modelo norte-americano. No meio de uma grande cidade, ele usava uma máscara e uma grande capa, como convêm a todos os defensores com identidade secreta. Esse, no entanto, estava parado no meio do trânsito, impossibilitado de voar, pois era o dia de rodízio de seu veículo. O protagonista era Overman, uma história publicada em tiras no jornal Folha de S.Paulo.
Em uma das ilustrações, Overman está sentado em uma cama. Ao seu lado está uma mulher tomando um sorvete. Ela, então, pergunta se ele possui visão de raio-X. “Não”, ele diz. Na tira seguinte, o sorvete cai e o personagem responde: “Tenho visão de olho gordo”. Esse é o perfil do protetor brasileiro.
A narrativa do herói que enfrenta muitos perrengues caiu no gosto dos leitores. Em 2004, ganhou a forma de vinhetas animadas do canal Cartoon Network. Num piscar de olhos já se passaram 25 anos desde que ele foi desenhado pela primeira vez. Para o cineasta Tomás Portella era hora de transformar as aventuras do defensor canalha em um longa-metragem. Ao lado das produtoras Iafa Britz e Carolina Castro (da Migdal Filmes), ele resolveu procurar um ator que estivesse à altura de representar o personagem. Precisava ser um cara mais velho, um bom intérprete – obviamente – e que fosse bagaceira, uma qualidade tão importante quanto as demais.
Aqui, uma pequena licença para trazer uma história de bastidores. Em paralelo a isso, o ator Caco Ciocler, amigo e colega de longa data de Iafa Britz, compareceu, a convite da produtora, à pré-estreia do filme La Situacion, de Tomás. Ele usava costeletas longas, pois estava gravando Americana, uma série histórica, e roupas modernas, uma combinação um tanto esquisita. Foi então que, ao encontrar com Iara, ela simplesmente congelou. Caco estranhou a atitude, mas também não questionou. A produtora, por sua vez, foi até Tomás e disse que havia encontrado o Overman. “Mas Caco parece ser um ator muito sério. Não sei se ele enfiaria o pé na jaca”, Tomás teria dito. Sem hesitar, Iafa respondeu: “Imagina, você não conhece o Caco, ele é bagaceiro pra caralho.”
Foi essa versão da história que chegou aos ouvidos do ator, ele conta numa entrevista por telefone. Para tirar as dúvidas, diretor e ator marcaram um teste no estúdio. Caco conhecia o desenho, mas não era fã. Nem mesmo tinha muita familiaridade com filmes de super-heróis. Fizeram uma série de improvisos baseados nas ilustrações, como o encontro de Overman com seu terapeuta. “Depois, Tomás me disse que em 10 minutos ele já sabia que era eu [que deveria fazer o personagem]. Foi uma surpresa para todos e até para mim. Eu sei que sou bagaceira, mas as pessoas não me veem assim.”
Masculinidade na lata de lixo
Encarnar um super-herói, para Caco, era algo parecido com um sonho que muitas pessoas possuem, mas não têm coragem de admitir. “É igual ganhar um Oscar. Claro que todos querem, e têm até um discurso ensaiado no banho, mas ninguém fala a respeito”, ele brinca. Muito mais do que isso, achou que havia passado da fase de interpretar um personagem do tipo. “Nunca pensei que fosse acontecer comigo, estou com 52 anos. Sem falar que o Brasil nem é o país certo para esse gênero de filme. Então jamais imaginei que nessa fase da vida eu interpretaria esse tipo de personagem. Ainda mais uma adaptação da Laerte, então foi um presente em dobro.”
O enredo é uma adaptação das tiras de Laerte, mas com muitas alterações. “O filme não é uma sátira aos filmes de super-heróis, ele não tira sarro, mas o personagem sim. Ele se inspira no imaginário do personagem americano. Essa trama de um cara que nasceu no Brasil, desempregado, que não consegue pagar aluguel, mas que tem superpoderes, e acha que ele tem que dar conta de ser um salvador, abre um leque gigantesco para nós brincarmos”, afirma Caco.
A cartunista teve pouco envolvimento na história. Exceto por um pitaco aqui e ali. Mas, ao fim, leu a última versão e deu sua bênção. Tanto no desenho quanto no filme em desenvolvimento, o protagonista tem em comum o fato de nunca tirar a máscara, como se não houvesse outra identidade para explorar. “Eu queria que ele não tivesse muitas definições além do quadro estereotípico, de ser um personagem com máscara, capa e uniforme. Queria deixar a coisa meio nebulosa. Mostrar o rosto me obrigaria a criar outra vertente para a história e isso não me interessava”, declara Laerte.
No filme, Overman se encontra no meio de uma crise existencial. Está sem um tostão. Até que o governador do Rio de Janeiro oferece um emprego na Secretaria de Segurança Pública, então ele vê uma oportunidade de se reerguer, mas logo descobre que as coisas são mais complicadas do que parecem. Ao trabalhar ao lado de Pâmela, a Mulher-Cachorro, que começa a ganhar reconhecimento igual ao dele, ele confronta sua masculinidade tóxica e descobre segredos não muito agradáveis envolvendo o chefe de Estado.
Para o ator, há alguns motivos que justificam o apelo de filmes com personagens com superpoderes. “Eu acho que essa coisa do herói é a base da criação das grandes narrativas, desde Homero. Um super-herói eleva isso a uma máxima potência. A projeção, principalmente das crianças e adolescentes, dessa figura que luta por justiça, acho que mexe em um lugar inconsciente. O que é legal de observar é que esses heróis têm entrado em uma crise pessoal. A fragilidade deles começa a encantar. Acho que isso acompanha uma discussão social e universal.”
Overman não é um personagem muito complexo. Ele possui uma visão limitada, que se resume entre o bem e o mal, o que lhe dá uma perspectiva muito rasa do que é o mundo. Ele tem um caráter duvidoso e um senso de ética um pouco debilitado. E gosta muito de farrear e beber. Oportunista, turrão, patife são algumas de suas características. Talvez ele se aproximasse mais das figuras da série The Boys, da Amazon Prime Video, em que os personagens usam seus poderes a favor de suas ambições.
Havia muitas falhas nos quadrinhos de 1998 que precisavam ser consertadas, como o machismo exacerbado e a violência de gênero (há tiras em que Overman bate em uma mulher). Nesse aspecto, o enredo atual passou por uma atualização, que torna o personagem menos desagradável e mais carismático.
Para o ator, era necessário achar um equilíbrio para não tornar o personagem muito caricatural. “Ele é um homem machista, bruto, inseguro, equivocado. Minha construção foi de humanizar esse cara, mas não de desculpar suas atitudes. Humanizar no sentido de revelar as sutilezas da masculinidade, o seu raciocínio equivocado, para que os homens possam se reconhecer ali. E assim denunciar essa lógica.”
Há algum tempo, Caco vem refletindo sobre a cultura machista através da arte. “Tenho percebido que, por ser um ator branco, heterossexual, os personagens que chegam até mim são representantes dessa masculinidade tóxica. Isso é muito interessante. Mesmo quando chega um herói, ele denuncia esse tipo de coisa, o que eu tenho achado incrível. A discussão é muito interessante e eu me coloco à disposição dela. E é um exercício diário essa desconstrução, ainda mais para a minha geração.”
Além das telas, ele tem visto essa questão se desenvolver dentro de casa com o seu enteado de 11 anos. “Acompanho muito esse debate porque ele estuda numa escola construtivista, onde essas questões estão em pauta. E eu acompanho o lado bom e o lado ruim disso. Tudo isso está colocado, mas é muito louco ver. A sensação é que os conceitos estão vindo antes da experiência para ele. Ele chega em casa cheio de conceitos do que é ser machista, preconceituoso, mas numa fase que ele está começando a se desenvolver e não tem muita noção do que é isso na prática.”
Heróis em greve
Calhou que este era o momento o ideal para produzir o filme. Afinal, todos os super-heróis estadunidenses estão em greve por conta da paralisação dos roteiristas e atores em Hollywood. A conclusão era que Overman seria o único encapuzado de plantão. No entanto, vale lembrar que seus vilões não são lá grande coisa e não representam uma grande ameaça, caso lembre do Maníaco Flatulento, do Passador de Trote, ou do Capitalista Imundo. O problema de Overman é um pouco mais interior, mais pessoal, para assim dizer. “O roteiro virou um herói, cujo objetivo não é salvar o mundo, mas ser feliz. Então ele faz terapia. Ele passa por esse arco, acha que só vai ser feliz quando for o herói que nasceu para ser, não aquele que as pessoas acham que ele tem que ser. Essa é a gênese da personagem”, conta Caco.
Embora tenha sido um trabalho divertido para Caco e toda a equipe, havia o desafio de dar forma a essa história sem transformá-la num roteiro sem sentido. No filme, Overman é uma versão de segunda categoria dos outros heróis. Para melhorar sua autoestima, ele tenta reproduzir um tipo semelhante ao de Batman. “Minhas referências externas serviram para isso, para escolher um modelo que ele achasse que deveria ser. O resto foi mergulhar no universo da Laerte, que não é fácil de ser decifrado.”
Quando aceitou o papel, Caco teve a sensação de que era um grande risco, mas um que estava disposto e que precisava se aventurar. “Essa sensação permaneceu bastante tempo. Nós fomos aprendendo a fazer isso juntos. Parecia que nós tínhamos um touro e fomos aprendendo a domá-lo enquanto o filme estava sendo rodado. Eram muitas variáveis técnicas, efeitos especiais com os quais não estávamos acostumados, a roupa e a máscara. Como eu habito essa roupa, essa espuma de músculo sem parecer uma fantasia? Que voz e corpo têm isso? Acho que erramos feio nas primeiras três diárias, mas fomos evoluindo.”
Após um longo e exaustivo trabalho, que implicava ficar 12 horas com um figurino “muito desconfortável”, ele celebra o resultado. Afinal, o personagem parece dizer muito sobre o povo brasileiro, com muitas chances de cair no gosto do público novamente. “Por que gostamos do Overman? Ele tem muitas crises, passa por perrengues tipicamente brasileiros. Não é à toa que ele se chama Overman, ele é muito tudo. E nós, brasileiros, somos muito exagerados. Somos muito alegres, muito fodidos, muito deprimidos, nós somos over.”
Com as filmagens finalizadas em agosto, o filme agora entra no processo de pós-produção, e ainda está sem previsão de estreia.