Continua após publicidade

A solidão implacável de ‘Todos Nós Desconhecidos’

O filme de Andrew Haigh conta a história de um homem que encontra os fantasmas dos pais, mortos há mais de 30 anos

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 18 jun 2024, 10h47 - Publicado em 17 abr 2024, 17h09

Então, você terminou de assistir ao filme “Todos Nós Desconhecidos”, de Andrew Haigh, ou melhor, sobreviveu a ele a custo de lágrimas e soluços, e muitas coisas devem ter passado pela sua cabeça. Algumas delas em relação ao conteúdo, dúvidas sobre o quanto daquilo que se vê é fantasia do personagem, ou pensamentos ainda mais íntimos, em relação à própria vida. Se você ainda não assistiu, prepare-se para permanecer com o filme na cabeça durante algum tempo. É inevitável se identificar com uma ou outra passagem da obra; ela é familiar demais. E, além disso, ela é simples, o que a torna ainda mais poderosa. Há muitos componentes de fácil identificação: a perda, a saudade, a identidade, a lembrança e as dores da infância, o desejo por afeto, mas, além disso, a solidão, presente em maior ou menor grau em todos os estágios da vida.

O filme tem início com um reflexo de dentro. Adam (Andrew Scott), o protagonista, está olhando a vista de seu apartamento, um prédio residencial recentemente inaugurado. Dele, é possível ver Londres. Para dentro, quase não entra barulho vindo de fora, já que as janelas são à prova de ruídos externos. Não é possível dizer quantas pessoas vivem ali, talvez quatro, cinco ou menos: duas. Ao fim, conhecemos apenas duas delas: Adam e Harry (Paul Mescal). A vida de Adam se limita àquele apartamento. Ele acorda, liga a TV, tenta trabalhar, come restos de comida dos dias anteriores e vê o dia chegar ao fim e, eventualmente, pega no sono novamente. A monotonia é similar ao que muitos de nós vivemos. O personagem é roteirista de TV e está batalhando para conseguir estruturar as primeiras linhas de seu texto. É então que resgata nas próprias memórias um lugar para divagar em seu passado e futuro.

Começa com o nome de uma rua, a sua, dos tempos em que era criança. A casa da própria família. Adam perdeu os pais ainda muito jovem, aos 12. Não teve a oportunidade de ter as discussões clássicas da adolescência, nem mesmo momentos felizes ao lado deles. Tampouco teve tempo de dizer a eles que é gay, e que sempre foi.

Continua após a publicidade

Tudo muda quando, numa visita pelo antigo bairro em que vivia, se depara com a residência do mesmo aspecto que era quando criança. E mais surpreendente ainda: com os seus pais vivendo lá, da mesma maneira que viviam há mais de 30 anos, antes de morrerem em um acidente de carro. Ele fica surpreso, com motivos de sobra, mas o desejo de que aquilo fosse realidade parece empurrá-lo para uma situação de naturalidade ao lado da família. Pais e filho tentam recuperar o tempo que não tiveram juntos. Os pais, limitados aos conhecimentos e tradições que tinham antes de morrerem, precisam do filho para se atualizarem. Isso, eventualmente, significa que precisam lidar com a sexualidade de Adam, que nesta fase da vida já passou dos 40. Em certa passagem do filme, o filho adulto pede para dormir no meio dos pais, e para a surpresa do público, a cena não provoca estranhamento.

O longa é uma adaptação do livro “Strangers”, de Hideo Harada. Na publicação, entretanto, o narrador é Hideo Harada, um homem divorciado de 47 anos, que vive em um prédio quase inteiramente comercial, em Tóquio. À noite é quando ele se encontra mais sozinho. Em uma dessas ocasiões, conhece Kei, uma jovem.

Um dos dilemas de nosso herói é a solidão do cotidiano, que passa a ser, mais ou menos, remendada quando conhece Harry. Certa noite, o personagem de Paul Mescal bate na porta de Adam, visivelmente bêbado, e sugere entrar para que os dois possam se conhecer melhor. A investida, na primeira vez, não dá certo. Mas quando se encontram novamente pelo prédio fantasma, os dois se envolvem. Essa parte da trama ocorre em paralelo ao encontro com os espíritos de seus pais, numa jornada do personagem em busca de dar significado à própria vida. Parece não existir um mundo além do apartamento e da casa da infância do personagem. E, mais ainda, nos leva à convicção de que não existem outras pessoas no mundo além daqueles três: o pai, a mãe e o seu companheiro.

“Todos Nós Desconhecidos” deve ser um dos filmes mais belos e tristes lançados nos últimos anos. Todas as críticas à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (o Oscar) parecem fazer ainda mais sentido quando pensamos nas indicações que o filme deixou de receber. A principal delas é a de Melhor Ator para Andrew Scott, numa atuação excepcionalmente delicada, sutil, sensível e espontânea ao mesmo tempo. O mesmo vale para Claire Foy, que interpreta a mãe de Adam, e que, em nenhum momento, deixa a dúvida de que ela é, de fato, a mãe daquele homem que tem a sua idade. Uma dose de imparcialidade aqui, mas ambos saíram extremamente injustiçados.

Continua após a publicidade

Um dos talentos da obra é a maneira como lida com o luto, como algo permanente e instável. É a partir do momento em que Adam reencontra os pais que ele passa a elaborar todo o sofrimento acumulado desde a infância. Afinal, no momento mais trágico de sua vida, ele era jovem demais, com sentimentos muito novos para poder nomear. O reencontro, portanto, é também consigo mesmo. É como se o tempo para ele, assim como os fantasmas dos pais, nunca tenha passado, dado que a dor nunca deixou de existir.

A narrativa peca, sim, em um aspecto, assim como tantas outras obras queer: na tragicidade de personagens LGBTQIAP+. É uma armadilha do cinema, como diria a cineasta brasileira Lillah Halla, do filme “Levante”. Nesse ponto, ainda há muito a ser percorrido.

Todos Nós Desconhecidos
Andrew Haigh
Reino Unido. 2023
105 min.

Publicidade