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OLÁ,

Arte brasileira e o lugar reservado aos artistas negros

Duas novas mostras do Instituto Inhotim investigam o papel fundamental dos criadores da diáspora atlântica para além da representação da figura negra

Por Lais Brevilheri
6 out 2023, 09h21
 (Instituto Inhotim/reprodução)
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Desde o dia 23 de setembro, é possível visitar no Instituto Inhotim as exposições Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim e Direito à forma. Ambas fazem parte do quarto ciclo do Programa Abdias Nascimento, que há dois anos vem trazendo para dentro do maior museu à céu aberto do país um diálogo com o Museu de Arte Negra (MAN) e com o legado do pintor, ativista, escritor e político, uma das pedras fundamentais do pensamento negro brasileiro.

Em entrevista à Bravo!, o curador convidado Igor Simões (responsável pela montagem das duas mostras) explica sua investigação do formal e do abstrato na produção de artistas diaspóricos: “Nesse momento, Inhotim ajuda a ampliar a discussão de arte afro-brasileira a partir dessas três exposições [as duas já citadas acima e uma outra dedicada ao Mestre Didi, que foi aberta em maio deste ano e também leva curadoria de Igor]. Isso é algo muito importante: que nós não tentemos encaixar a produção afro-brasileira em um ou outro significado único, em um ou outro estilo, em uma ou outra linguagem. A arte afro-brasileira é uma categoria política.”

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Rubem Valentim na Bienal de São Paulo de 1977 (Fundo Rubem Valentim / MASP/divulgação)

Em Fazer o moderno, construir o contemporâneo se abre o diálogo entre a produção de Rubem Valentim e as reverberações de sua obra, apresentando-a ao lado de outros 10 artistas cujos trabalhos tocam, atritam, amplificam ou continuam as explorações do pintor baiano. Lucas Menezes, curador ao lado de Simões, destaca: “Rubem foi um artista que expôs muito, esteve presente em várias bienais, em várias exposições no Brasil e no mundo. Ele deu espaço para que pensemos em como seu trabalho conviveu com outros trabalhos, como ele se relacionou a outras figuras da arte brasileira. Por isso, quisemos retomar essa dinâmica como convite para pensar a obra – que é extremamente generosa, pela produção profícua, mas também pela troca intensa. Fomos conduzindo o processo de pesquisa para que duplos se formem no encontro do olhar, ao girar 360º, as triangulações e outras geometrias se criam no espaço.”

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Vista da exposição “Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim” na Galeria Lago (no Instituto Inhotim (Tiago Nunes / Instituto Inhotim/divulgação)
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A montagem da exposição ocupa a galeria Lago que, estreita, conduz o visitante sempre para frente. Em meio a pinturas, relevos, esboços, objetos, emblemas serigráficos e registros que se expandem por 30 anos da produção de Valentim, pode-se ver como a equipe curatorial conseguiu criar momentos, pausas, nesse trajeto. Três grandes guias estão colocados ali: O primeiro, “Fora do fazer, não há salvação”, pensa o trabalho do ateliê, a criação constante, múltipla e obsessiva, as trocas com outros artistas. O segundo se debruça sobre a negação de Rubem em seu manifesto tardio, em que diz: “nunca fui concreto”, e o que significa essa distinção, como podemos perceber que a exploração de Valentim não era apenas estética, mas, carregada de simbologia, história, fé, religião, se torna transcendental. E por último, o terceiro foca na busca constante pelo conhecimento.

“Encontramos uma chave para pensar não apenas a obra de Rubem Valentim, mas a partir dela gerar uma série de reverberações. A primeira delas foi entender que qualquer noção de moderno brasileiro, ou de arte moderna brasileira, tem que passar pela experiência do Atlântico, e Rubem Valentim se ergue como um moderno Atlântico por excelência. Tentamos situar Rubem Valentim como uma dessas figuras-chave para compreender a arte brasileira e, ao mesmo tempo, para conectar com a outra exposição, compreender a arte afro-brasileira como algo múltiplo, multifacetado, que não cabe em caixinhas” diz Igor Simões.

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Peças da produção múltipla de Rubem Valentim (Tiago Nunes / Instituto Inhotim/divulgação)

As vizinhanças propostas na exposição se estendem pelos trabalhos de Mestre Didi, Rosana Paulino, Emanoel Araujo, Jaime Lauriano, Rebeca Carapiá, Allan Weber, Bené Fonteles, Rubane Maia, Froiid e Jorge dos Anjos, compreendendo projetos demais variados, da fotografia à escultura. Comprovando assim a envergadura e a importância de Rubem Valentim.

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Em segundo plano, o trabalho, comissionado pelo instituto Inhotim, ao artista mineiro Froiid, 25 quadros serão reorganizados diariamente na mostra (Tiago Nunes / Inhotim/divulgação)

A segunda exposição, Direito à forma, abre e tem como ponto de partida a frase da historiadora, ativista do movimento negro e intelectual Beatriz Nascimento: “Sou atlântica”. Igor Simões explica: “Nós partimos desse caráter atlântico que liga toda essa produção, a herança de discussão formal, de discussão de linguagem, está no cerne do fazer de artistas negros, não só brasileiros. É a conexão da diáspora africana e do atlântico como esse lugar de fluxos, trocas, negociações e de tensões.” Deri Andrade, que assina a curadoria ao lado de Igor, acrescenta: “A exposição é atlântica, é afro-diaspórica. Reparem que além de artistas brasileiros, estão aqui presentes também Igshaan Adams e Jabulani Dhlamini. Igshaan faz parte do acervo do Inhotim e, apesar de não ser um artista brasileiro, entendemos que havia uma conexão com o que estamos propondo.”

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Sonia Gomes​_sem título, da série​ Torções​, 2021​ (Instituto Inhotim/divulgação)

Sonia Gomes​_sem título, da série​ Torções​, 2021​Ele explica também que a mostra “é uma exposição que parte da coleção do Inhotim, e isso é interessante porque, Quilombo, no ano passado, também partia da coleção. O instituto tem adquirido trabalhos de autoria negra e aqui alguns deles estão presentes. É uma maneira de tensionar essa coleção, de se entender como ela está sendo formada.”

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Abixo, Marcel Diogo, série Arma Branca (Colonialismo, Capitalismo, Racismo, Genocído, Encarceramento, Eugenia), mármore em base de madeira, 1983 (Tiago Nunes / Insttuto Inhotim/divulgação)

Ao escolher centralizar a exploração formal e não dar espaço para obras que representam o corpo negro, a curadoria se livra da armadilha do tema negro. “Gosto bastante dessa anedota: se a gente pega as imagens que circulavam ali no final do século XX quando se falava de arte afro-brasileira, um conjunto aparecia muito: os orixás de Caribé. Por muito tempo, elas foram associadas à arte afro-brasileira. Vejam só, um homem branco e argentino pensando, produzindo, essa ideia de arte afro-brasileira”, se diverte Igor.

“O direito à forma nesse momento, hoje, é necessário para que possamos discutir com foco na elaboração formal. Se de um lado é muito importante que tenhamos um número muito maior de artistas negros nas galerias, no mercado, por outro lado, isso também tem criado uma espécie de ênfase, quase como se a gente estivesse caindo em outro tema de arte afro-brasileira em termos de linguagem: a pintura figurativa com representação de corpo negro geralmente em situação de precariedade. Isso não é uma crítica à pintura negra brasileira, que é excelente, mas onde encontramos espaços para outras discussões? Como nós podemos escapar dessa armadilha nova de tentar mais uma vez fixar o que pode um artista negro? O artista negro pode aquilo que ele quiser, um artista negro pode, inclusive, não se interessar em discutir raça, um artista negro pode abstrair”, Igor continua.

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Olbra de Rebeca Carapiá na exposição Direto a forma (Tiago Nunes / Inhotim/divulgação)
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Reunindo cerca de 60 trabalhos de mais de 30 artistas, Direito à forma nos apresenta a pluralidade da produção afro-brasileira em suportes diversos do fazer artístico. Assim, demonstra que o caminho trilhado por Rubem Valentim, Mestre Didi e Abdias Nascimento continua se expandindo, de modo que é realmente impossível pensar a arte contemporânea brasileira sem considerar essa produção cara, rica e atlântica.

Exposições: Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim; e Direito à forma

Galeria Lago (eixo rosa) e Galeria Fonte (eixo amarelo)
Instituto Inhotim | Rua B, 20, Inhotim, Brumadinho, MG
De quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30.
Ingressos: R$ 50 (inteira), R$ 25 (meia-entrada*). Todas as quartas-feiras são gratuitas

“Fazer o moderno, construir o contemporâneo: Rubem Valentim” fica em cartaz até setembro 2024
“Direito à forma” fica em cartaz até março de 2024

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